segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

A Mariologia na Redemptoris Mater de João Paulo II - parte 4

Na segunda parte do capítulo que trata de Encíclica Redemptoris Mater do Papa João Paulo II, no seu livro “Maria, nueva Eva”, Cándido Pozo passa à análise da maternidade de Maria em relação à Igreja e aos cristãos, tornando a teologia do Papa sobre o tema ainda mais acessível13:

1.         O testamento da Cruz



A passagem de Jo 19,25-27 tem sido objeto de atenta reflexão por parte dos exegetas e mariológos. Por múltiplas razões, está fora de toda dúvida razoável que não nos é relatado nela uma cena meramente familiar (Jesus moribundo, preocupada com a solidão futura de sua Mãe, a confiaria a um amigo), mas sim uma cena de alcance teológico na qual Jesus proclama Maria como mãe do discípulo, de todo discípulo, enquanto incute em todo discípulo que conseqüentemente olhe para Maria como mãe. A partir desta convicção acerca de qual é a verdadeira exegese destes versículos, costuma-se designar a cena como “a proclamação da maternidade espiritual de Maria”.
Tudo isso é muito certo. Entretanto, João Paulo II, na Encíclica Redemptoris Mater, chama esta passagem com um novo nome sumamente sugestivo, que pode ser muito útil para uma vivência renovada do que Jesus quis nos dizer nela: “o testamento da Cruz”. Jesus, como todo moribundo, se preocupa em legar. A partir da cruz, nos lega o que de mais precioso possui na terra, a sua Mãe. Este é o sentido último das solenes e profundas palavras de Jesus crucificado: “Jesus, vendo sua Mãe e junto a ela o discípulo que ele amava, disse a sua Mãe: ‘Mulher, eis aí o teu filho’. Logo disse ao discípulo: ‘Eis aí a tua Mãe’” (Jo 19,26-27).
É conhecido que o pensamento filosófico de Karol Wojtyla está fortemente impregnado de um personalismo são. Isso lhe faz não se esquecer que, no momento em que Jesus pronuncia essas palavras, não está simplesmente morrendo pela salvação da humanidade em abstrato, mas pela salvação de cada pessoa em particular. São Paulo, que aos Efésios escreve: “Cristo nos amou e se entregou por nós“ (Ef 5,2) ou “Cristo amou a Igreja e se entregou por ela” (Ef 5,25), tem em sua carta aos Gálatas a expressão mais absolutamente pessoal: “Amou-me e se entregou por mim” (Gál 2,20). O fato de sua doação total em concreto por cada um tem, sem dúvidas, que refletir-se na própria consciência humana de Jesus. Porque as palavras do “testamento da cruz” são pronunciadas nesse precioso momento em que a Redenção está se realizando, “a Mãe de Cristo, encontrando-se no campo direto deste mistério que abarca o homem – a cada um e a todos -, é entregue ao homem – a cada um e a todos – como Mãe”. Isso implica que não podemos contentar-nos com ver nessas palavras de Jesus moribundo uma proclamação da maternidade espiritual de Maria sobre todos os fiéis; é um testamento em que concretamente me é dada Maria como minha Mãe.

a)         A acolhida do discípulo

Um testamento tem que ser aceito. O “testamento da cruz”, enquanto que é dirigido a cada um em particular, e não somente aos fiéis em geral, tem que ser aceito por cada um de nós. “A partir daquela hora o discípulo a acolheu entre suas coisas” (Jo 19,27); desde aquela hora todo discípulo, para ser um bom discípulo, tem que aceitar o testamento e tomar Maria como coisa sua.
São João assinalou, outras vezes, diversas qualidade que tem de reunir o discípulo de Jesus para o ser realmente: tem que guardar seus mandamentos (Jo 14,14.21.23), partindo de um amor a Deus (1 Jo 5,2); os discípulos têm que amar-se mutuamente como Cristo os amou (Jo 13,35;15,12); têm que crer que Jesus foi enviado por Deus (Jo 17,8) e que é o Filho de Deus (Jo 20,31); têm que adotar uma atitude de humildade e serviço, seguindo o exemplo do Mestre (Jo 13,13-17). Em Jo 19,2714 é anunciada é nota subseqüente que o discípulo deve possuir: deve ter Maria como coisa sua; entre suas estruturas espirituais deve haver uma dimensão mariana que o faça acolher (λαβεν não significa “olhar”, mas “tomar” ou “acolher”) Maria como Mãe.  A palavra “acolher” implica assim todo um comportamento filial com respeito à Maria. “Entregando-se filialmente a Maria, o cristão, como o apostólo João, ‘acolhe entre as suas coisas’ a Mãe de Cristo e a introduz em todo o espaço de sua vida interior, isto é, em seu eu humano e cristão”.
A tradução mais comum do texto de Jo 19,27 (“acolheu-a em sua casa”) não faz jus à riqueza contida nessa passagem. A Encíclica crê insuficiente esse modo de traduzir:

“Como é bem sabido, no texto em grego a expressão ες τ δια supera o limite de uma acolhida de Maria por parte do discípulo no sentido do mero alojamento material e da hospitalidade em sua casa; expressa melhor uma comunhão de vida que se estabelece entre os dois com base nas palavras do Cristo agonizante”.

A Encíclica confirma essa posição com um belo texto de Santo Agostinho: “Tomou-a consigo, não entre sua herança, porque não possuía nada próprio, mas entre suas obrigações que realiza com senso de urgência. I. de La Potterie capta perfeitamente o sentido do versículo quando propões traduzi-lo como: “A partir daquela hora, o discípulo a acolheu em sua intimidade”.15
 No conjunto de reflexões que gravitam sobre a afirmação mesma de Jo 19,27 (“A partir daquela hora, o discípulo a acolheu entre suas coisas”), aparece claramente, em primeiro lugar, que a devoção mariana constitui uma dimensão irrenunciável do discípulo de Jesus, desde o momento em que o Senhor proclamou seu testamento, até o fim dos tempos. Compreende-se, por isso, a frase de Paulo VI em sua homilia no Santuário de Nossa Senhora de Bonaria em 24 de Abril de 1970: “se queremos ser cristãos, devemos ser marianos”. Com essas palavras, Paulo VI não anunciava um pensamento piedoso, mas que se limitava estritamente a traduzir Jo 19,27: desde então todo discípulo de Jesus, para ser-lo, deve ter uma profunda dimensão mariana.
Em segundo ligar, a devoção mariana, por expressar-se em uma relação mútua entre mãe e filho, tem ressonâncias de total intimidade pessoal. “É essencial à maternidade a referência à pessoa. A maternidade determina sempre uma relação única e irreproduzível entre duas pessoas: a da mãe com o filho e a do filho com a mãe. Ainda que a uma mesma mulher seja mãe de muitos filhos, sua relação pessoal com cada um deles caracteriza a maternidade em sua própria essência. De fato, cada filho é gerado de um modo único e irreproduzível, e isto vale tanto para a mãe como para o filho. Cada filho é rodeado do mesmo modo por aquele amor materno, sobre o qual se baseia sua formação e amadurecimento na humanidade”. Pois então, isto que aparece com claridade “na ordem da natureza” é também verdadeiro por analogia “na ordem da graça”. Por isso, a afirmação da Encíclica de que Maria é dada como mãe particularmente a cada discípulo, ilumina ulteriormente o sentido da resposta a este dom que é exigida em Jo 19,27: “A partir daquela hora, o discípulo a acolheu entre suas coisas”. Esta “afirmação indica, ainda que indiretamente, o que a relação íntima de um filho com sua mãe expressa. E tudo isso se encerra na palavra ‘entrega’. A entrega é a resposta ao amor de uma pessoa e, concretamente, ao amor da mãe”. A devoção mariana de todo discípulo deve chegar até a entrega filial a “Aquela que é a sua Mãe”.

b)         A Anunciação e a espera de Pentecostes



Encerra uma consideração sumamente importante original e profunda a afirmação do Papa na Encíclica de que “na economia da graça, atuada pela ação do Espírito Santo, dá-se uma particular correspondência entre o momento da Encarnação do Verbo e o do nascimento da Igreja. A pessoa que une estes dois momentos é Maria: Maria em Nazaré e Maria no cenáculo de Jerusalém”. Na realidade, Maria concebe a Jesus pela obra do Espírito Santo. A Igreja recebe também a vida pelo dom do Espírito Santo impetrado pela intercessão materna de Maria. Este paralelismo é lógico, já que a Igreja, como corpo místico de Cristo, é prolongação d’Ele. Poder-se-ia dizer, portanto, que, tanto para que Jesus nasça como para que nasça a Igreja (no sentido de que começa a ter a vida da graça que o Espírito Santo a comunica), os dois protagonistas são sempre os mesmos: Maria e o Espírito Santo.
Assim, Maria esteve presente – como mãe, tinha que estar – no momento em que a Igreja começa o caminho da fé, ou seja, quando é inaugurada “a peregrinação da Igreja através da história dos homens e dos povos”. Por isso se encontra no meio dos apóstolos no cenáculo “implorando com seus pedidos o dom do Espírito”. Por certo, trata-se do Espírito “que na Anunciação já havia coberto a ela com a sua sombra”.
Ulteriormente, Maria tem que estar presente na posterior ação evangelizadora da Igreja. “Também em sua obra apostólica com razão a Igreja olha para aquela que gerou a Cristo, concebido pelo Espírito Santo e nascido da Virgem, precisamente para que pela Igreja nasça e cresça também nos corações dos fiéis”. Este olhar à Mãe de Cristo surge espontaneamente, se se tem em conta o sentido maternal da ação apostólica da Igreja. São Paulo o expressou de modo vigoroso ao escrever: “Filhinho meus, por quem sofro de novo dores de parto, até ver Cristo formado em vós!” (Gál 4,19). Neste ponto, “a Igreja se encontra com Maria e tenta assemelhar-se a ela”. Neste sentido, “Maria está presente no mistério da Igreja como modelo”. Mas Maria é muito mais para a Igreja: “A maternidade de Igreja é levada a cabo não somente segundo o modelo e a figura de Mãe de Deus, mas também com sua ‘cooperação’”. Aquela que com sua oração obteve em Pentecostes o dom do Espírito, assunta em corpo e alma ao céu, mediante sua intercessão, “com materno amor coopera incessantemente com a geração e educação” dos filhos e filhas da mãe Igreja.
A presença de Maria na vida da Igreja é inegável e, com certeza, possui um peso decisivo. Ela reuniu em torno de si as famílias cristãs que o Concílio Vaticano II chama de “igrejas domésticas”, durante séculos com a oração do terço, em que com os olhos de Maria se contemplam suavemente, enquanto são debulhadas as “Ave-Marias”, os mistérios fundamentais da nossa salvação. Desgraçadamente, o costume do terço em família decaiu de modo bastante notável. Vale a pena exortar as famílias cristãs a que, pelo o menos em ocasiões específicas, recuperem este costume cheio de valores cristãos. A imagem ou o quadro da Virgem, que não deve faltar no lar de nenhuma família católica, deve ser ponto de referência a alguma oração familiar, ainda que breve, à Mãe do Senhor. Maria também está presente nas comunidades paroquiais, em cujos templos sua imagem sempre possui um lugar destacado. Teremos que procurar vivificar um culto sério a ela. A presença de Maria é patente nos institutos religiosos, muitos dos quais levam seu nome inclusive em seu título oficial. Está igualmente presente nas dioceses, nenhuma das quais carece de um grande santuário mariano.
O Papa se detém para enfatizar a importância dessa “geografia” mariana, cujas virtualidades pastorais temos que aproveitar ao máximo. Os grandes santuários de influxo internacional exercem uma ação de atração espiritual incalculável. Guadalupe do México, Lourdes ou Fátima são centos de espiritualidade aos quais acodem multidões de fiéis de diversos países, que se sentem atraídos pela Virgem e que aos seus pés encontram a Cristo: os fiéis nestes santuários não passam espontaneamente a uma reconciliação, cheia de arrependimento e conversão, no sacramento do perdão e uma gozosa recepção na Eucaristia? A nível nacional, não podemos nos esquecer da eficácia dos grandes santuários da Virgem existentes nas diversas regiões. Devemos potenciar esse influxo para contribuir assim com uma renovação espiritual dos nossos fiéis.
Nestes santuários, veneremos imagens de Maria, algumas delas rodeadas do carinho de milhares e milhares de fiéis durantes séculos Não desvalorizemos o culto às imagens. Precisamente no mesmo ano em que João Paulo II publicava sua Encíclica Redemptoris Mater (1987), celebrava-se “o 12° centenário do II Concílio ecumênico de Nicea (a. 787), no qual, ao final da controvérsia sobre o culto às imagens sagradas, foi definido que, segundo o ensinamento da Igreja, podiam-se propor à veneração dos fiéis, junto com a Cruz, também as imagens da Mãe de Deus, dos Anjos e dos Santos, tanto nas igrejas como nas casas e nos caminhos”



[13] Cf. POZO, C., “María, nueva Eva.”, BAC, Madrid 2005, p. 416-423.


[15] “’Et à partir de cette heure, Le Disciple l’accueillit dans son intimité’ (Jn 19,27b). Réflexions méthodologiques sur l’interprétation d’um verset johannique”: Mar 42 (1980) 84-125

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