sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

A Mariologia na Redemptoris Mater de João Paulo II - parte 3

Nas próximas páginas, Cándido Pozo, ainda no grande tema da fé de Maria, relembra as palavras de João Paulo II sobre a profecia de Simeão e o cântico de Maria, importantes tópicos dentro da mariologia da Redemptoris Mater.12

b) O segundo anúncio a Maria




Uma técnica, seguida pelo Papa na Encíclica Redemptoris Mater, consiste em alcunhar novos termos para designar conhecidas passagens evangélicas. As novas denominações permitem uma nova compreensão das cenas as quais se aplicam.
Muitas vezes, falamos da profecia do velho Simeão (Lc 2, 34-35) e ponderamos sua importância. Na Encíclica é original considerar-la “como um segundo anúncio a Maria”. O primeiro anúncio, o do anjo, possui tons gloriosos e triunfais; do Filho que é prometido à Virgem, diz-se que “será grande, chamar-se-á Filho do Altíssimo, o Senhor lhe dará o trono do seu pai Davi, reinará sobre a casa de Jacó eternamente, e seu reino não terá fim” (Lc 1,32-33). Agora Maria tem que ouvir outras palavras, “sugeridas pelo Espírito santo (cf. Lc 2, 25-27)”, que soam de maneira muito mais sombria.
O “segundo anúncio” contém dois elementos: de Jesus diz-se que será “sinal de contradição” (Lc 2,34), isto é, “bandeira discutida” segundo a tradução litúrgica espanhola (o assunto impressiona fortemente João Paulo II, quem, como é sabido, nos Exercícios Espirituais que, sendo cardeal, pregou a Paulo VI, centrou ao redor dele e todas as suas considerações); como conseqüência deste combate em torno a Cristo e da oposição que se faz a Jesus, Maria terá que sofrer: “a tua própria alma será transpassada por uma espada” (Lc 2,35). Por um lado, Simeão expressa “a concreta dimensão histórica na qual o Filho cumprirá sua missão, isto é, em meio à incompreensão e a dor”; por outro lado, anuncia a Maria “que deverá viver no sofrimento sua obediência de fé ao lado do Salvador que sofre, e que sua maternidade será sombria e dolorosa”. Maria não retrocede diante dos aspectos sombrios de sua missão; logo o mostrará assumindo as dificuldades de sua fuga ao Egito para proteger a vida de seu Filho.
A escuridão enquanto Maria “avançava na fé” é patente em Nazaré durante o seu largo período de vida oculta. O Papa mostra que nesses anos, para usar expressões de São João da Cruz, Maria vive a “noite da fé” enquanto um “véu” cobre a realidade do mistério; o uso desta terminologia é normal no Papa: não se esqueça de que a tese de doutorado em teologia de Karol Wojtyla foi sobre “A fé em São João da Cruz”. Provavelmente não meditamos o bastante estes aspectos quando nos referimos à vida oculta de Jesus de Nazaré. O anjo havia dito a Maria, da parte de Deus, coisas gloriosas sobre seu Filho. Ela tem que crer nelas “dias após dia”, ainda que vão passando os anos não somente da infância, mas também da primeira juventude de Jesus até seus trinta anos, sem que paradoxalmente faça nada do que pareceria dever se esperar do Messias. Maria convive em Nazaré com um Jesus desconcertadamente consagrado a tarefas que nada parecem ter a ver com sua missão, nem sequer parecer estar em consonância com a descrição contida no anúncio do anjo. É por isso maravilhoso contemplar que “deste modo Maria, durante muitos anos, permaneceu em intimidade com o mistério de seu Filho e avançava em seu itinerário de fé”. Realmente Maria “vivia em intimidade com este mistério somente por meio da fé”.
O “véu” se faz especialmente denso no Calvário. Ali, junto à cruz, enquanto mantinha seu “sim” da anunciação, tinha, sem dúvida, que recordar, uma vez mais, as palavras grandiosas do anjo: “Será grande, chamar-se-á Filho do Altíssimo, o Senhor lhe dará o trono de Davi seu pai, reinará sobre a casa de Jacó eternamente, e seu reino não terá fim” (Lc 1, 32-33). Tendo presentes estas palavras em sua memória, acreditava nelas também então, quando “estando junto à cruz, Maria é testemunha, humanamente falando, de uma completa contradição àquelas palavras”. Em nenhum momento de sua vida aparece como nesses momentos a heroicidade da “obediência da fé” de Maria diante dos “insondáveis desígnios” de Deus, cujos “caminhos são insondáveis” (cf. Rom 11,33).

c)         O “Magnificat”: profissão de fé de Maria



Nossa fé tem necessidade de fórmulas concisas nas quais se expresse. Na liturgia eucarística dos domingos e das solenidades, proclamamos nossa fé com as fórmulas veneráveis de um Credo (o Niceno-Constantinopolitano ou o Apostólico), isto é, de uma profissão de fé. Também Maria, ao responder a Isabel com o Magnificat (uma vez mais nesta Encíclica o Papa alcunha um termo novo muito sugestivo), pronuncia “inspirada profissão de sua fé, na qual a resposta à palavra da revelação é expressada com a elevação espiritual e poética de todo seu ser até Deus”. O Magnificat nos permite assim descobrir o conteúdo da fé de Maria.
Antes de tudo, confessa a “nova ‘auto-doação’ de Deus”, o mistério do “eterno amor que, como um dom irrevogável, entra na história do homem” de modo absolutamente novo. Trata-se de uma “promessa feita aos pais” que teve seu cumprimento em Cristo. Maria “se encontrou no próprio centro desta plenitude de Cristo”; “nela, como mãe de Cristo, converge toda a economia salvífica”. A alegria de Maria (“alegra-se meu espírito em Deus meu salvador”) pelas coisas que o Poderoso, cujo nome é santo, fez por ela, tem como fundamento esta realidade central de sua fé: o Deus da Aliança se lembrou “da misericórdia”. “E não se detendo em sua vontade de encher-nos de dons, não obstante o pecado do homem, Deus se dá no Filho”.
Esta é a “verdade não ofuscada sobre Deus” que a “nova Eva” proclama contra a “suspeita” que o “pai da mentira” fez surgir no coração da primeira mulher: o Deus que “desde o começo é a fonte de todo dom”, fez agora grandes obras. “Porque Deus amou tanto o mundo que deu seu Filho único” (Jo 3,16). “Maria é o primeiro testemunho desta verdade”, que a Igreja não cessa de repetir.
Com a força desta verdade sobre Deus, proclamada com tão extraordinária simplicidade por Maria, a Igreja “se vê confortada” e “ao mesmo tempo, com esta verdade sobre Deus deseja iluminar as difíceis e às vezes intricadas vias da existência terrena dos homens”.
“Maria está profundamente impregnada do espírito dos “pobres de Yahvé”. Isto significa que se sente pobre e pequena diante de Deus. Esta consciência de pequenez dá um novo relevo a sua “experiência pessoal” de que Deus fez “grandes obras” por ela. Sentindo-se, ao mesmo tempo, insignificante e amada de Deus, descobre “que não se pode separar a verdade sobre Deus que salva, sobre Deus que é fonte de todo dom, da manifestação de seu amor preferencial pelos pobres e humildes”. Cada um de nós renovará esta convicção meditando as palavras de Maria no Magnificat.
À luz do Magnificat descobrimos que somente a atitude religiosa de Maria, refletida nele, oferece um contexto que permite compreender o sentido do “amor preferencial pelos pobres” e o verdadeiro “sentido cristão da liberdade e da liberação”. Deus “derruba do trono os poderosos, exalta os humildes, enche de bens os famintos e despede os ricos de mãos vazias... dispersa os soberbos... e conserva sua misericórdia para com os que o temem” (cf. Lc 1, 50-53). A disposição espiritual sobre a que Ele exercita sua misericórdia, nos tira de um contexto meramente sociológico, a propósito do qual a opção deve qualificar-se como preferencial. Talvez não seja inútil lembrar aqui que um teólogo da libertação escreveu que basta o adjetivo “preferencial” aplicado à opção pelos pobres para que uma teologia da libertação com cores marxistas resulte impossível. De fato, a dialética da luta de classes exige optar por um frente a outros, e nela se tornaria sem sentido a opção preferencial por uma das duas trincheiras que se enfrentam em combate; ou se entra com todas as conseqüência em uma ou na outra.

d) Maternidade pela fé



Maria foi Mãe de Cristo como conseqüência de sua resposta de fé ao anjo (Lc 1, 38). O “fiat de Maria – faça-se em mim” – decidiu, a partir do ponto de vista humano, a realização do mistério divino” da Encarnação.
A importância salvífica da fé de Maria, enfatizada nas palavras de Isabel em Lc 1,45 (“Feliz és tu que creste”), permite entender melhor certas passagens evangélicas aparentemente difíceis. Uma delas é exclusiva de Lucas. Enquanto Jesus falava, levada pelo entusiasmo que lhe ouvir produzia nela, “levantou a voz uma melhor dentre a gente, e disse, dirigindo-se a Jesus: ‘Feliz o ventre que te levou, e os peitos que te criaram!’” (Lc 11,27). À exclamação simples e popular, Jesus responde levando o elogio a outro plano: “Mais felizes os que escutam a Palavra de Deus e a guardam” (Lc 11,28).
A outra passagem citada na Encíclica também é tirada de Lucas, mas é patrimônio comum de toda a tradição sinóptica (cf. Mt 12,46-50; Mc 3,31-35).

“Ao ser anunciado a Jesus que sua ‘mãe e irmãos estão lá fora e desejam ver-te’, Ele responde: ‘Minha mãe e meus irmãos são aqueles que ouvem a palavra de Deus e a colocam em prática’ (cf. Lc 8,20-21). E disse isso ‘olhando ao seu redor para os que estavam sentados em  circulo’, como lemos em Marcos (3,34), ou, segundo Mateus, ‘estendendo sua mão em direção a seus discípulos’”.

Ambas as cenas foram qualificadas, às vezes, como as “passagens antimariológicas” dos Evangelhos. Em muitas ocasiões, quis-se ver nessas passagens como expressão de uma vontade de Jesus de distanciar-se de sua Mãe, e até como uma advertência a não supervalorizá-la. Nada mais longe da realidade.
É notável que a Encíclica não somente cite Lc 11,27-28 (de todo, patrimônio exclusivamente lucano), mas também, para a segunda cena, recorra à redação de Lucas, ainda que se trate de uma passagem que é comum a Mateus e Marcos. Creio que esta opção tenha sérios motivos. Lucas não pode ter se esquecido nos capítulos 8 e 11 do que havia escrito no capítulo 1. Nele, ele havia apresentado Maria com palavras de Isabel como “Feliz és tu que creste” (Lc 1,45). Sua resposta de fé não se limitou, segundo o testemunho de Lucas, a ser uma afirmação intelectual frente à palavra ouvida a partir do anjo, mas foi uma entrega total para o cumprimento: “Eis aqui a escrava do Senhor; faça-se em mim segundo a tua palavra” (Lc 1,38). Lucas é, finalmente, o evangelista que nos apresenta duas vezes, de modo explícito, Maria como a que “guardava” a palavra e “a conservava cuidadosamente em seu coração” (cf. Lc 2,9.51). Por isso, Lucas não pode ter se esquecido dessas afirmações presentes no seu próprio Evangelho, tem que ter sido consciente de que em ambas as afirmações de Jesus (Lc 8,21; 11,28) Maria não somente não fica excluída, mas “que a maternidade nova e distinta, da que Jesus fala a seus discípulos, concerne concretamente a Maria de modo especialíssimo”. Maria é digna de louvor por ser biologicamente Mãe de Jesus, como intuiu aquela simples mulher do povo; mas mais ainda pela reação de fé viva que se entrelaça de modo íntimo com Ele desde o princípio dessa maternidade, desde o “sim” ao anjo na anunciação.
Em todo caso, as passagens citadas contêm uma doutrina de importância primordial para cada um de nós. A imitação de Maria que nos precede em sua peregrinação da fé, cada um de nós pode entrar na família de Jesus, em relação familiar com Ele, por uma fé viva, por uma aceitação de sua mensagem que chegue ao fiel comprimento, a colocá-la em prática com toda nossa vida.
Na Encíclica é enfatizado que a entrega plena de Maria em sua resposta ao anjo está em “plena consonância com as palavras do Filho que, segundo a Carta aos Hebreus, ao vir ao mundo disse ao Pai: ‘Não quiseste sacrifício nem oblação, mas me formaste um corpo... Eis que venho... ó Deus, para fazer a tua vontade’ (Heb 10,5-7)”. Deste modo, o ato pelo qual Maria se dá e pelo qual coopera com obra salvadora de Cristo tem, objetivamente considerado, o sentido de se unir à entrega de Jesus. Imitando Maria, temos que realizar uma entrega da nossa própria vida com uma fé conseqüente que nos una ao próprio oferecimento de Jesus ao Pai. Isso fará possível que cada um de nós afirme: “Pela minha parte, completo na minha carne o que falta aos sofrimentos de Cristo por seu corpo que é a Igreja” (Col 1,24).


[12] Cf. POZO, C., “María, nueva Eva.”, BAC, Madrid 2005, p. 410-416.

A toda prova (ou missão dada é missão cumprida)

Minha reflexão nessa manhã é dupla, mas é única.
É baseada em um argumento somente que gerou em mim duas respostas distintas.

Após fazer uma crítica à amizade íntima entre nosso partido governante e o governo revolucionário castrista de Cuba, apresentando uma estimativa do número de mortos baixo a ditadura de Fidel, me apresentaram o seguinte desafio (objeção implícita): "contabilize quantos a democracia dos estados unidos já mataram..."

Inicialmente, gostaria de fazer o seguinte esclarecimento a qualquer pessoa que venha a ler o que eu escrevo: minha crítica a qualquer governo opressor, a qualquer política que ameace qualquer liberdade ou direito, a qualquer ditadura, não está justificando nenhum governo opressor, nenhuma outra política que ameace qualquer liberdade ou direito, e nenhuma outra ditadura.
Onde está escrito, minha gente, que criticar um governo comunista é sinônimo de exaltar o governo e história dos Estados Unidos?
Ao desejar que o meu país esteja livre do PT e, assim, livre da ameaça palpável de um governo socialista, não implica que eu deseje uma cópia da "democracia" americana no Brasil. ("democracia", já os EUA caminham pela mesmíssima estrada rumo ao comunismo que nós e uma cópia, nos padrões atuais, seria trocar seis por meia-dúzia).

Bom, dito isso, vem agora a parte da tarefa requisitada.
Devo dizer que adoro um dever de casa. Adoro correr atrás de dados, descobrir coisas, mesmo as mais bobas, como quando meu marido e eu esquecemos como se conjuga um verbo qualquer ou como se usa um tempo verbo significando condicional. Encaro mesmo: vou atrás das gramáticas, dos vídeos, dos arquivos...

Para encontrar o números de mortos nas diversas guerras empreendidas pelos EUA ao longo dos anos (que foram muitas), visitei diversos sites com diversos números, mas muitos sem fonte. Vou admitir aqui uma coisa que, do ponto de vista acadêmico não é exatamente louvável: acabei recorrendo ao Wikipedia. Isso poderia desacreditar toda a pesquisa, mas acontece que hoje (principalmente em se tratando de temas anti-americanos) o Wikipedia possui a mais vasta apresentação de fontes bibliográficas que há na internet.

Transportando os dados encontrados para o Excel e aplicando a soma, chegamos ao grande total de: 1.405.429 mortos. Podemos então, para facilitar, arredondar para 1,5 milhões de mortos! Devemos considerar, entretanto, que esse número inclui os mortos na guerra civil americana (que só perde para a II Guerra Mundial em número de mortos) e que, segundo minhas pesquisas, existe um consenso que coloca em 700.000 mortos nesse conflito. A Guerra Civil Americana, bem como os conflitos acontecidos antes dela, não podem então ser, rigorosamente, considerados como "guerras causadas pela democracia americana", já que foi justamente através dessa guerra que os EUA se tornaram um país independente (lembre-se que, até então, não passava de uma colônia britânica). Assim, corrigindo os números e excluindo os mortos sob o governo britânico, chegamos ao total de 638.039 ou aproximadamente 650 mil mortos (um número monstruoso, de fato). 

Diante desse número, os 115.127 mortos baixo o governo de Fidel Castro em cuba até 2004 parecem bobeira. 
Mas resolvi levar a tarefa mais além e tentar encontrar um número que nos mostrasse por quantas mortes o socialismo foi responsável no mundo.
Encontrei um post de um senhor que rebatia um post de um outro senhor e que afirmava que os números de mortos baixo Stalin não são tão altos como normalmente se afirma. E qual é esse número verdadeiro e honesto então? Segundo ele, 2,5 milhões de pessoas! 

Mas não podemos nos esquecer de Mao Tse Tung. Não. Essa obra prima da humanidade foi responsável, segundo diversas fontes, por 40 milhões de mortos por mortes não-naturais. Por que é importante essa distinção? porque se consideramos a fome como uma morte natural, o número pode subir consideravelmente e chegar a 80 milhões de mortos.

O vídeo abaixo, parte do documentário AGENDA, de Curtis Bowers, dá uma luz no assunto (peço desculpas pela marca no centro do vídeo - usei uma versão teste de um programa para cortá-lo):





Conclusão: Porque o socialismo é mal? Por que, independentemente do que eles te façam acreditar, o socialismo não passa de uma máquina de matar. 

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

A Mariologia na Redemptoris Mater de João Paulo II - parte 2


Continuando a apresentação do último capítulo de “María, nueva Eva” de Cándido Pozo, traduzo abaixo sua exposição sobre o tema da fé de Maria ao assentir ao plano de salvação do Pai e como o Papa João Paulo II nos guia pelo tema em sua Encíclica Redemptoris Mater.7




1.           A fé de Maria

Dentro dos testemunhos patrísticos mais antigos sobre a associação de Maria, como nova Eva, à obra salvadora de Cristo é importante que Tertuliano acentue a importância da fé de Maria nesta colaboração positiva: “Eva havia crido na serpente; Maria creu em Gabriel. O que aquela pecou crendo, apagou esta crendo”. Isto obriga a estudar um dos temas maiores presentes na Encíclica Redemptoris Mater, a importância da fé de Maria de modo a realizar a missão que Deus a confiou. H. U. Von Balthasar chegou a escrever: “O toque genial da Encíclica consiste, sobretudo, em ter colocado no seu centro o tema da fé de Maria”8. Este é o primeiro ponto que creio ser necessário estudar para dar uma visão de conjunto da doutrina mariológica da Encíclica, sem deter-me, de modo reflexo, no que pudessem ser seus aspectos ecumênicos, que o mesmo Von Balthasar expressava, em seguida das suas palavras citadas, na forma de uma pergunta meramente retórica: “a Encíclica por acaso não mantém um oculto e apaixonado diálogo com Lutero?”.

a)           A Anunciação

Quando os Padres do século II começam a expor a teologia de Maria como “nova Eva”, fazem-no aludindo explicitamente à cena da anunciação. É nela onde Maria dialoga com o anjo e obedece a Deus, em antítese à desobediência da primeira Eva após o seu diálogo com o demônio. Por isso, era óbvio que o Papa começasse sua Encíclica mariana com uma profunda reflexão sobre a Anunciação.
O anjo saúda a Maria com as palavras “Alegra-te, cheia de graça, o Senhor está contigo” (Lc 1, 28). É bem sabido que a expressão “cheia de graça” não é estritamente uma tradução do particípio grego κεχαριτωμένη9, mas sim fruto de uma reflexão de fé sobre ele. Sem dúvida, o verbo χαριτóω, que contém como raiz a palavra χαρις (graça), tem, no Novo Testamento, sentido teológico (“fazer objeto da graça”), como consta pela única outra passagem em que aparece: Deus Pai “nos fez objeto da graça no Amado” (Ef, 1,6). Com isso, é claro que toda tradução de κεχαριτωμένη na linha de um sentido profano do verbo – linha iniciada no século XVI com as traduções de Erasmo e Lutero - estaria fora de lugar.
É normal explicar a mudança da mera tradução “feita objeto da graça” ao desentranhar seu sentido, por uma reflexão de fé, como “cheia de graça”, apelando ao fato de que o particípio faz em Lc 1,28 as vezes de nome próprio da Virgem10. A utilização de uma denominação gramatical, através de um adjetivo ou verbo no particípio, como se fosse nome próprio de alguém só pode ser feita quando a qualidade aludida se dá por antonomásia11 naquela pessoa. Este modo de argumentação se dá na Encíclica como conhecido e é reconhecido o seu valor. O Papa, entretanto, mostra predileção por um método que é característico na Redemptoris Mater e que consiste em iluminar o texto através de uma outra passagem bíblica aparentemente sem relação, mas que, colocado em paralelismo com ele, permite chegar ao fundo de seu significado.
Em efeito, Isabel proclama Maria “bendita entre as mulheres” (Lc 1,42). A expressão a situa por cima de todas. Deste modo, é significativo que a ação de graças “se refira a Maria de modo especial e excepcional”.
As graças que nos são concedidas nos conduzem a uma entrega a Deus. A plenitude de graça previamente concedida a Maria tende a suscitar n’Ela uma plena resposta de fé às palavras que o anjo a transmite. Também Isabel louvará a fé de Maria e a declarará feliz porque teve essa fé: “Feliz aquela creu” (Lc 1, 45). “A plenitude de graça anunciada pelo anjo significa o próprio dom de Deus; a fé de Maria, proclamada por Isabel na visitação, indica como a Virgem de Nazaré respondeu a esse dom”.
Mas não podemos esquecer que a formulação histórica da resposta de fé de Maria tem tons da mais total entrega: “Eis aqui a escrava do Senhor, faça-se em mim segundo tua palavra” (Lc, 1,38). É conhecido que a palavra “fé” tem no Novo Testamento diversos sentidos. Somente dois nos interessam aqui. Às vezes, o termo se refere a uma “fé” meramente intelectual. É o sentido que, para atender a uma problemática muito viva naquele momento, privilegiou o Concílio Vaticano I. Não se pode sub-valorizar a importância desta fé. Entretanto, é importante declarar sua insuficiência, se não se desenvolve de modo que seja “a fé que atua pela caridade” (Gál 5,6). Quando a fé não chega a um comportamento coerente, teremos que reconhecer com tristeza que “como o corpo sem espírito está morto, também a fé sem obras está morta” (Tia 2,26). Em outras ocasiões, no Novo Testamento, a palavra “fé” tem o sentido totalizante de plena resposta afirmativa a Cristo que começa pela adesão intelectual e se prolonga no comportamento coerente. O Concílio Vaticano II utiliza este conceito ao dizer que “pela fé o homem se entrega inteira e livremente a Deus”. Uma explicação oficial dada no próprio Concílio faz alusão a que com a fórmula citada se reproduz “a aceitação mais ampla da palavra que aparece nos escritos de Paulo”. É o que teologicamente se chama “fé formada”, na qual, além da fé em sentido estrito, “incluem-se a esperança e a caridade”. A resposta de fé de Maria evidentemente não se circunscreve somente a aceitar como verdadeiro o anúncio do anjo, mas passa a uma disponibilidade absoluta frente aos planos de Deus; como escrava se submete a Sua vontade e se oferece para unir seu destino ao de seu Filho: “Eis aqui a escrava do Senhor, faça-se em mim segundo tua palavra” (Lc 1,38).
Compreende-se a insistência da Encíclica em que imitemos a “obediência da fé” (Rom 16,26) de Maria, pela qual “se consagrou totalmente a si mesma, qual escrava do Senhor, à pessoa e à obra de seu Filho”. Maria na sua “excepcional peregrinação de fé representa um ponto de referência constante para a Igreja, para os indivíduos e comunidades, para os povos e nações e, em certo modo, para toda a humanidade”. Desde o momento da anunciação, Maria empreende “todo seu ‘caminho até Deus’, todo seu caminho de fé. E sobre essa via, de modo eminente e realmente heróico – mais que isso, como um heroísmo de fé cada vez maior – se efetuará a ‘obediência’ professada por ela à palavra da revelação divina. E essa ‘obediência da fé’ por parte de Maria ao largo de todo seu caminho terá analogias surpreendentes como a fé de Abraão”. Nestes tempos de fé fraca e, mais ainda, de fé pouco coerente, a figura de Maria adquire um relevo de exemplaridade indiscutível. Faremos bem em olhar para Maria para aprender com Ela como deve ser a nossa fé.



[7] Cf. POZO, C., “María, nueva Eva.”, BAC, Madrid 2005, p. 406-409.
[8] “Kommentar”, em J. RATZINGER – H. U. VON BALTHASAR, Maria – Gottes Ja zum Menschen. Enzyklika “Mutter dês Erlösers”, o.c., 133.
[10] SAN PEDRO CANISIO, De Maria Virgine incomparabili et Dei Genitrice sacrosancta, 1.3, c.7, p.266 havia demonstrado que o particípio sem artículo adquire sentido de algo que se é por excelência sobre os demais. “O anjo substitui nome de Maria por κεχαριτωμένη: é o seu "novo nome", o nome pelo qual é conhecida no plano de Deus, revelado na mensagem.” (J. P. AUDET, “L’Annonce à Marie”, a.c., 359).
[11]  Figura de linguagem caracterizada pela substituição de um nome por outro nome ou expressão que lembre uma qualidade, característica ou um fato que, de alguma forma, identifique-o.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

A Mariologia na Redemptoris Mater de João Paulo II - parte 1

Acabei de ler hoje um livro muito bacana: María, nueva Eva de Cándido Pozo1. De teologia dogmática, tratando sobre Maria, os dogmas marianos e o culto a Maria, o livro não é de maneira alguma de fácil leitura, mas me prendeu desde o princípio e fez crescer em mim o amor e a devoção a Nossa Mãe Santíssima.

O autor, Cándido Pozo, falecido em 2011, foi um sacerdote jesuíta, escritor e destacado teólogo da Igreja Católica. Era formado em Filosofia e Teologia e obteve seu doutorado nesta segunda disciplina pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. Foi autor de inúmeros livros, estudos e artigos sobre Teologia, com especialidade em Mariologia, Teologia Fundamental e Escatologia. Era, de verdade, um homem de Deus que, para Sua honra e glória, muito contribuiu para a Teologia da Igreja. 

Em Maria, nueva Eva, o padre Pozo nos oferece um verdadeiro presente. Faz desde um estudo da motivação da Mariologia como ciência em si, até uma apresentação da fundamentação Bíblica e da Tradição dos dogmas Marianos, passando por uma exposição bastante pormenorizada das questões ecumênicas relacionadas ao culto mariano e as diferenças entre Católicos e Protestantes no que concerne a Maria. 

Mas o que eu quero chamar atenção aqui é para o último capítulo do livro, chamado “A Mariologia de João Paulo II em sua Encíclica ‘Redemptoris Mater’”. De modo geral, podemos dizer que esse último capítulo faz uma bonita conclusão dos capítulos anteriores e encerra de maneira perfeita a obra. A cada parágrafo que lia, pensava comigo: “tenho que postar isso!”. Por isso, resolvi, atrevidamente, postar todo o capítulo aqui. Aos poucos, é claro, de modo que esse tesouro possa ser disponibilizado para outras pessoas. Assim, pessoas que, como eu, talvez tenham um pouco de dificuldade em ler e compreender as longas Encíclicas Papais, possam aproveitar para renovar a ciência e a fé em torna do tema mariano. 

Assim, como muita alegria, posto aqui a primeira parte, em uma tradução livre feita por mim, da Conclusão de Maria, nueva Eva, de C. Pozo, que é uma introdução à teologia do Papa João Paulo II constante na Redemptoris Mater.2 

Beato João Paulo II - o Papa mariano


Em 25 de março de 1987, solenidade da Anunciação a Maria, João Paulo II, assinava a Encíclica Redemptoris Mater. Parece claro que o povo de Deus esperava do Papa como o daquela época um grande documento mariano. Trata-se de um Papa que levou a seu escudo papal não somente o anagrama de Maria, mas também as palavras Totus tuus, que sintetizam o núcleo fundamental de sua consagração pessoal de escravidão mariana, feita muito antes de seu pontificado e renovada diante da imagem da Virgem de Czestochowa em sua primeira viagem como Papa à Polônia; de um Papa que em suas viagens apostólicas não omite nunca a visita ao santuário mariano mais representativo de cada nação, para a partir dele fomentar com seu exemplo e sua palavra a piedade mariana de cada povo. Neste sentido, pode-se dizer que João Paulo II, ainda que dentro de seu magistério tão rico e abundante sobre a Virgem, estava em “dívida” com a Igreja.3  

Em todo caso, é lógico que não pudesse escrever seu grande documento sobre Maria senão depois de ter falado de Deus, isto é, do magistério trinitário. Isso explica sua grande trilogia prévia de encíclicas, na qual cada uma delas está dedicada a uma das três pessoas trinitárias: Redemptor hominis (4 de março de 1979) trata do Filho; Dives in misericórdia (30 de novembro de 1980), do Pai; Dominum et vivificantem (18 de maio de 1986), do Espírito Santo. Mas é significativo que em seguida João Paulo II tenha querido falar à Igreja sobre a Mãe do Senhor. 

O enfoque de sua Encíclica “Sobre a Bem-Aventurada Virgem Maria na vida da Igreja peregrina” estava condicionado pela primeira de suas encíclicas, que, precisamente por ser a primeira, deve ser considerada como sua Encíclica programática. Se a visão de Cristo que João Paulo II havia ressaltado nela era a de “Redentor do homem”, é normal que agora o ângulo de acesso à figura de Maria fosse o de “Mãe do Redentor” (Redemptoris Mater), isto é, a relação de Maria com a obra redentora de Cristo, “sua presença ativa e exemplar na vida da Igreja”.

Em função de este modo de apresentar, à Encíclica está subjacente o tema mais antigo da fé da Igreja sobre Maria, o tema de Maria “nova Eva”, que se ressalta ainda mais na mesma Encíclica com o recurso ao título equivalente de “Mãe dos viventes”, tomado de Santo Epifânio. Lembre-se, de fato, que em Gen 3, 204 se explica e justifica, pelo fato de ser “mãe de todos os viventes”, o nome de Eva imposto à primeira mulher. A primeira apresentação de Maria como “nova Eva” aparece, pela primeira vez, como já expomos, em São Justino pouco depois do ano 130. Muito pouco depois, o tema, substancialmente sem alterações, reaparece em Santo Irineu e Tertuliano.

A ideia comum nesta apresentação da teologia do século II pode resumir-se nestes termos: a primeira Eva dialoga com o diabo, desobedece a Deus e com isso traz sobre a humanidade morte e ruína; Maria, segunda Eva, dialoga com o anjo, obedece a Deus e dá a luz ao Salvador e com Ele à salvação. De modo paralelo a como a primeira Eva foi colaboradora de Adão na obra da ruína, a segunda, isto é, Maria, colabora com o novo Adão, Cristo, na obra salvadora.

As afirmações de São Justino, Santo Irineu e Tertuliano se produzem em um arco temporal muito curto e com uma surpreendente sintonia temática. Como não é fácil pensar em dependências diretas sucessivas neste ponto, inclusive pela dispersão geográfica na qual aparecem os testemunhos, tudo faz supor que o tema seria anterior a São Justino. Se aceita-se que este tema elaborado já existe antes do ano 150, pode-se dizer que se está falando da própria pregação apostólica. É inquestionável que a pregação apostólica apresentava Cristo como o “novo Adão”; isso ficou registrado no próprio Novo Testamento (cf. 1 Cor 15,455, além do paralelismo de oposição que se faz em Rom 5, 18-196). Os testemunhos convergentes dos Padres do século II fariam pensar que essa mesma pregação apostólica via, junto a Ele, a figura feminina de uma “nova Eva”.




1- POZO, C., María, nueva Eva. (Madrid, 2005)
2- Cf. POZO, C., “María, nueva Eva.”, BAC, Madrid 2005, p. 403-405.
3- Posteriormente, ao largo dos anos 1995-1997, o Papa dedicou 70 belíssimas catequeses nas audiências das quartas-feiras à figura da Santíssima Virgem, as quais constituem um impressionante monumento da figura de Maria.
4- “Adão pôs à sua mulher o nome de Eva, porque ela era a mãe de todos os viventes.”(Gen 3:20)
5- “Como está escrito: O primeiro homem, Adão, foi feito alma vivente {Gn 2,7}; o segundo Adão é espírito vivificante.” (1 Cor 15:45)
6- “Portanto, como pelo pecado de um só a condenação se estendeu a todos os homens, assim por um único ato de justiça recebem todos os homens a justificação que dá a vida.
Assim como pela desobediência de um só homem foram todos constituídos pecadores, assim pela obediência de um só todos se tornarão justos.” (Rom 5:18-19)


segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Desce o pano, Fim da farsa

molotovQuantas vezes você já ouviu no noticiário que uma “manifestação pacífica acaba em violência”? Várias vezes, pelo menos nos últimos meses. E há uma razão para ser assim.
Abro o jornal e leio a reportagem sobre a manifestação do Passe-Livre em Londrina, que, como era de se esperar, acabou em confusão, depredação do patrimônio público, destruição dos ônibus e muita correria. A manifestação era pacífica, e como toda manifestação pacífica neste país de Dilma, a paz só não foi observada porque alguns elementos se infiltraram no movimento para promover a baderna. Fica a pergunta: quem eram esses elementos?
Se para alguma coisa me serviu a universidade, foi para compreender melhor como funcionam, por dentro, essas manifestações pacíficas que terminam invariavelmente em pancadaria e vandalismo.
Vai um breve testemunho pessoal para a instrução dos pequenos.
O ano era 2000, e eu era um feliz estudante da USP. Cursava Ciências Sociais e morava no CRUSP. Tinha tudo para ser o perfeito idiota latino-americano, mas já na época preferia ser apenas idiota, incapaz da perfeição e refratário à ostentação da minha latino-americanidade. As festividades em comemoração aos 500 anos do Descobrimento se aproximavam e com elas os protestos por todo o país. O DCE da USP não poderia ficar de fora e marcou sua manifestação “contra os 500 anos”. Como os 500 anos eram uma entidade por demais abstrata, o movimento manifesteiro precisava de um alvo mais concreto, que foi gentilmente cedido pela Rede Globo, na forma do seu famoso Relógio dos 500 anos. O leitor mais jovem talvez não lembre que raio de coisa ridícula era esse relógio, projetado por Hans Donner e instalado Brasil afora, mas o Google poderá ajudá-lo nesse exercício de consciência histórica. Procure aí. A manifestação pacífica foi marcada para o dia 22 de fevereiro. Começaria no Largo de Pinheiro e marcharia até a praça Luís Carlos Paraná, na Av. Faria Lima, onde se encontrava o símbolo do imperialismo, o Relógio da Globo. E o McDonalds da esquina…
E aqui faço um pequeno parêntese para a digressão sobre o espírito da época. Os estudantes então andavam inquietos, crentes na inevitável vitória da luta anti-neoliberal. No ano anterior, em 1999, a Rodada do Milênio havia sido interrompida pelo que ficou conhecido no folclore esquerdista como “A batalha de Seattle”. Organizações do mundo inteiro (não faltaram nossos MST, CUT e PT) viajaram para a terra do Nirvana, a banda, com o objetivo de tocar o terror e impedir as negociações do Grande Capital e da globalização excludente, defendendo uma sociedade mais justa, igualitária, etc, etc, etc. E o pau quebrou. E foi porrada para todo lado. E os manifestantes perceberam, sobretudo aqueles ligados ao grupo ATTAC, da França, que podiam enfrentar a polícia utilizando algumas táticas de combate de rua. Meses depois, o ATTAC, cuja filial brasileira operava na Unesp, exportava para todo o mundo subdesenvolvido cursos de “guerrilha urbana” e táticas para combater e se defender de tropas de choque. O estacionamento da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP era frequentemente utilizado, em finais de semana, como campo de treinamento. Se não me falha a memória, o então presidente do Grêmio da FAU era filho de uma das lideranças nacionais do MST. E o professor João Sette Whitaker já era uma espécie de guru anti-globalista entre os alunos de arquitetura. O sucesso da revolta de Seattle fazia a cabeça dos estudantes, e muitos se sentiam como Marighellas pós-modernos. No início de janeiro daquele ano, a Confederação das Nacionalidades Indígenas do Equador, organização membro do Foro de São Paulo, havia dado um golpe de Estado, liderado pelo coronel comunista Lucio Gutiérrez, que prometia adotar o modelo chavista na condução da economia e das coisas públicas. O golpe fracassaria dali a uns dias, mas o clima de “agora vai” empolgava a esquerda continental. Além da euforia internacional, os hormônios revolucionários paulistanos eram excitados pelo desgoverno do prefeito Celso Pitta, herdeiro de Paulo Maluf, atual aliado político do PT. A Revolução começaria com o Relógio da Globo, faria uma pausa no McDonalds e acabaria com a decapitação de Pitta. Nessa época, o grito “Fora já, fora já daqui, o FHC e o FMI” era poesia mais revolucionária do que ver a banda passar cantando coisas de amor. Fecho o parêntese.
No dia 22 de fevereiro, reuniram-se no Largo de Pinheiros umas mil pessoas, a maioria estudantes secundaristas e alunos da USP, arrebanhados pelo DCE. A organização, na verdade, ficava por conta do Comitê Brasil Outros 500, que prometia acabar com a festa de aniversário de descobrimento de Vera Cruz. O Sintusp, claro, dava sua força, fornecendo ônibus, caminhão de som, sanduíche de mortadela e coca-cola. Havia uma meia dúzia de anarco-punks, vindos provavelmente da Galeria do Rock. E eu, observando tudo e morrendo de sede naquele calor desgraçado.
Eu não tinha nada contra os 500 anos, uma realidade cronológica que protesto algum poderia revogar. Nem contra o Relógio. Muito menos simpatizava com qualquer coisa revindicada ali. Poderia dizer que meu interesse era meramente antropológico, mas estaria mentindo. A verdade é que eu estava no meio daquela bagunça só porque gostava da bagunça em si e porque não tinha nada melhor para fazer no CRUSP, que a essa hora deveria estar um deserto. Sem convicção necessária para tomar parte no coro (Fora já, fora já daqui…) e sem ânimo exigido para caminhar até o Relógio na Faria Lima, resolvi me pendurar no caminhão de som, onde, além de água fresca, eu tinha uma visão privilegiada da muvuca.
Começa a marcha. Algum sindicalista grita uma palavra de ordem. A garotada pinta a cara. Os punks vão na frente. Há uma movimentação mais impaciente da polícia, que escolta a manifestação até a praça. O caminhão de som estaciona próximo ao Relógio. A polícia faz um cordão de isolamento para proteger o monstrengo de Hans Donner. Mas a manifestação é pacífica, e ninguém vai fazer coisa alguma, exceto chamar a polícia de fascista. Tudo muito tranquilo. Até que membros do DCE, que estavam no caminhão de som e que eram os organizadores da passeata, começam a retirar de caixas e a distribuir aos manifestantes, sobretudo aos punks, balões com tinta e garrafas com gasolina. Tudo na moita, para não chamar atenção. Começa a provocação. Os manifestantes se aproximam do cordão de isolamento, a polícia tenta afastá-los. Alguém joga um balão de tinta por sobre os policiais e atinge o relógio. A multidão vibra. Outro balão. A multidão delira. Alguns policiais tentam dispersar os baloneiros. A multidão corre. Começa a chuva de balões. De pedras. De paus. Em cima do caminhão de som, uma garota do DCE, cínica e histericamente, grita: “sem violência, sem violência”. A polícia parte para cima da multidão e desfaz o cordão de isolamento. Correria e cacetada para todo lado. “Sem violência, sem violência”. Alguns anarco-punks se aproveitam da confusão e tentam botar fogo no Relógio. Primeiro jogam molotovs, que falham. Depois espalham a gasolina recebida do DCE e atiram fogo, mas as chamas pequeno-burguesas não contribuem para o avanço da revolução e se apagam, deixando o falo hansdônnico intacto. Tum, tum, tum. Chega o Choque. O bagulho fica lôco, e o McDonalds, cheio de estudantes escondidos até debaixo da mesa. A tropa de choque fecha uma esquina. Fecha outra. Toma a avenida. Encurrala a multidão mais valente contra a parede de um edifício e começa a fazer o que faz de melhor: botar juízo em vagabundo. Nisso já têm bomba de fumaça, gás lacrimogênio, o diabo. A menina do DCE sumiu do caminhão de som, que está abandonado naquela paisagem mais ou menos de guerra civil, mais ou menos de forró universitário. Um e outro punk, um e outro estudante foram presos. São os presos políticos, cuja libertação será exigida pelo Comitê Brasil Outros 500, ao longo da semana.
No dia seguinte, em declaração ao Estado de São Paulo, lideranças do DCE dizem que o movimento era pacífico, mas que fora infiltrado por algumas pessoas desejosas de descaracterizar a manifestação. A foto de um punk incendiando umas folhas de papel decide o bode expiatório: tudo corria bem, até que os punks resolveram provocar a polícia e começar a confusão. Jornalistas e estudantes ficam satisfeitos com a versão, o DCE sai limpo da história, mesmo tendo sido ele, desde o começo, quem planejara todo o ato e seus desdobramentos mais violentos, e promete outra manifestação pacífica para a próxima semana, na Avenida Paulista.
Pego meu sanduíche de mortadela e minha coca-cola com o funcionário do Sintusp. Caminho até o Largo de Pinheiros e tomo o ônibus de volta para o Butantã. Desce o pano. Fim da farsa.


Publicado originalmente no blog do autor.
Silvio Grimaldo de Camargo é sociólogo e editor.

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Os milagres de Jesus ocorreram?

Numa conversa recente com um amigo, percebi nele um erro que, infelizmente, ocorre com muita frequência. Para construir um ponto de um pensamento irracional ele citou como "várias pessoas católicas ainda acreditam que Jesus de fato multiplicou os pães". Mas espera aí! Jesus de fato multiplicou os pães, os peixes, curou cegos, inválidos. Não? A Bíblia deve ser interpretada de outra forma? Levar os milagres ao pé da letra está errado?

No vídeo abaixo, Padre Paulo Ricardo nos explica de maneira impecável essa questão à luz dos ensinamentos da Igreja, nos mostrando de onde esse pensamento que nega os milagres de Cristo surgiu...


"Se você não acredita em milagres, então você simplesmente já não é mais Cristão. Não se trata aqui de uma pequena heresia, trata-se de uma verdadeira apostasia."

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

A pegadinha do raciocínio de esquerda

Faz alguns meses que tomei gosto pelos vídeos e aulas do Padre Paulo Ricardo. Gostei muito da maneira franca e sem parcialidade com que ele dá suas aulas e introduz um maneira honesta de pensar que até então era desconhecida para mim: principalmente a filosofia aristotélica e tomista. A partir dessas mesmas aulas, conheci o filósofo Olavo de Carvalho, amado por muitos e odiado por outros mais. 
Olavo de Carvalho, como é reconhecido por muita gente, é um importante pensador e estudioso da realidade atual e, de maneira às vezes cruel e brutal, defende com unhas e dentes a honestidade na construção do pensamento científico. Mas claro, que ser humano de boa vontade não defenderia?
Nas suas aulas, Olavo de Carvalho ressalta em diversas ocasiões a malícia do pensamento de esquerda e a pegadinha do seu raciocínio. 
Devo admitir que pensava que isso tudo era mais rixa ideológica que falta de honestidade por parte dos esquerdistas de fato. 
Pensava... Por que com o passar dos meses, ao adentrar cada vez mais no mundo da análise e da reflexão sobre a realidade em que vivemos, vi diante de meus olhos tudo aquilo sobre o que o querido Padre Paulo Ricardo e o estimado Olavo de Carvalho me alertavam.

E o que eu vi? Bom, vi  argumentos de uma lógica sem-lógica, auto-referencial e que, desmascarados pelo lado oposto (nós) pelo o que eles realmente são (infundadas e sem sentido), viram ofensa pessoal e tentativa de desmoralização daquele que discorda.

No mês de Novembro passado, fomos, meu marido e eu, à Irlanda encontrar com um amigo de infância de Otávio. Conhecemos naquela ocasião seu "room-mate", o rapaz que divide o apartamento com ele e sua esposa, que chamaremos aqui de Jack (na verdade nem me lembro se esse era de fato seu nome. Se for, faz de conta de era John). Jack é um cientista social, funcionário do governo irlandês, que faz parte de uma comissão para a saúde mental, ou algo do tipo. 

Após um jantar mais que agradável oferecido por nosso casal de amigos, iniciou-se uma discussão acerca das pressões da ideologia gayzista e como a mídia e as vozes atuais têm feito um esforço gigantesco para a normalização da homossexualidade. Pelo o menos essa era a nossa constatação, minha, do meu marido e dos nossos amigos. Jack, por outro lado, ficou ultrajado com nossa "observação fascista". Sem querer replicar aqui toda a discussão que, não preciso nem dizer, foi cansativa pela atitude "catch me if you can" do nosso interlocutor, Jack, do alto da sua ética e moralidade incólumes, baseou sua argumentação em um ponto muito malicioso:
"Imagine os negros, as mulheres, os índios, e como a inserção desses na sociedade já foi um tabu e considerado 'fora do normal' ou 'não-natural'. Agora, os homossexuais enfrentam os mesmos obstáculos e as mesmas dificuldade de aquisição dos seus direitos que tais grupos já tiveram um dia. Mas a sociedade evolui... E como evoluiu para a questão racial, também está evoluindo na questão de gênero." 

Seu fundamento era que, como os brancos nos Estados Unidos uma vez já consideraram um absurdo pensar em um negro nadando em uma mesma piscina que um branco, nós hoje, heterossexuais, católicos preconceituosos, achamos um absurdo a questão da homossexualidade ser tratada com tanta banalidade na televisão, na mídia, nas escolas, enfim, no mundo em que vivemos.

Para o interlocutor distraído, pode até fazer um leve sentido, de forma que podemos chegar a compadecer do homossexual como excluído. Afinal, quem pensaria hoje em excluir um negro simplesmente por ser negro? Os tempos evoluem e a sociedade aprende com seus erros, né?

Novamente, sem entrar nos méritos da discussão em si, que aqui serve apenas de cenário para o meu argumento da desonestidade da esquerda, vamos pensar no que Jack estava afirmando.
Basicamente, o que ele dizia era que, porque algum segmento da sociedade um dia já errou, nós, por consequência lógica, devemos estar errados. Por que um grupo de pessoas, independentemente da sua representatividade na sociedade como um todo, já cometeu algum tipo de injustiça em relação a um outro grupo social, então, automaticamente, aqueles que rejeitam a banalidade da maneira como a questão de gênero é tratada hoje em dia devem estar errados!
Esse tipo de raciocínio faz sentido? É claro que não! Ele foge do tema discutido em si, abstém-se de entrar no assunto e tira conclusões baseadas em fatos completamente não relacionados. Exposto dessa maneira, parece óbvio que esse tipo de raciocínio seja desonesto, mas, estranhamente, ele é extensivamente usado e está disseminado por toda classe intelectual de esquerda.

Nos últimos dias tenho estudado um pouco mais sobre Islamismo e as dificuldades no diálogo com Muçulmanos a partir do ponto de vista do Cristianismo. Ao descobrir a Jihad Watch e o seu fundador, Robert Spencer, resolvi aprender um pouco mais com ele e suas aulas. Robert Spencer é autor de um controverso livro chamado "Did Muhammad Exist?", que argumenta que Maomé de fato não existiu e que sua existência teria sido inventada em nome da criação de uma religião de identidade árabe. Assim, me aventurei a escutar um debate promovido por uma rádio britânica entre Robert Spencer e Adnan Rashid, um estudioso, pesquisador e difusor do islamismo. 

O interessante nesse debate é a postura claramente esquerdista e desonesta do debatedor com o Sr. Spencer. Spencer começa explicando os pontos levantados por ele no seu livro e faz argumentações de fato significativas para justificar sua dúvida em relação a existência do profeta do islamismo. Para qualquer defensor de uma ideia oposta, essa seria a deixa perfeita para contra-argumentar com os seus fatos e mostrar para ele que, na verdade, ele estava enganado por tais e tais motivos, que suas fontes estavam equivocadas em tais e tais pontos, que as datas citadas estão em desacordo com tais e tais documentos. Bom, era isso o que eu faria, pelo o menos. Ou qualquer pessoa engajada em uma discussão honesta. 
Era o que eu esperava que o Sr. Rashid fosse fazer.

O seu contra-argumento? Ele começa perguntando sobre a fé do Spencer, que logo afirma ser cristão. Mas o que isso tem a ver? Ele argumenta que muitos estudiosos (sem precisar quais) afirmam que a existência de Jesus, como um homem histórico, é no mínimo duvidosa. Afirma categoricamente que a quantidade de fontes históricas sobre Maomé é muito superior a quantidade de fontes sobre Jesus, sem citar nenhuma ou fazer referencias sólidas. Por fim, termina (lembre-se: termina a suposta argumentação de que Maomé existiu) afirmando que Robert Spencer não passa de um hipócrita pois acredita em Jesus e se nega a acreditar em Maomé. Que os argumentos de Spencer não são válidos, pois ele, como cristão, acredita em um indivíduo sobre o qual existem menos fontes históricas a respeito do que sobre Maomé.

Interessante. Muitos anti-cristãos escutando devem ter se sentido satisfeitos pela conquista argumentativa de Adnan Rashid. Conquista que não passou do método malicioso tradicional do pensamento esquerdista. O que ele faz? Prestemos atenção: incapaz de refutar os pontos levantados legitimamente por R. Spencer, ele faz uso de uma lógica duplamente medíocre: usa um raciocínio sem-pé-nem-cabeça sem relação com o tema em questão ao mesmo tempo em que tenta desacreditar e desmoralizar o seu interlocutor. 
Se Jesus existiu ou não. Se sua figura foi também inventada ou imaginada pelos cristãos, ou se de fato existiu um Jesus de Nazaré não faz a mínima diferença para a discussão levantada. Assim mesmo, esse foi o ponto de partida para a refutação de "uma autoridade no assunto". 

É simplesmente vergonhoso ver o conhecimento humano ir decaindo dessa maneira e ver pessoas de argumentação e análise tão fracas sendo levadas a sério. 
Para mim, a ordem da vez é o estudo que, no final das contas, vence e se sobressai e toda essa enganação científica existente por aí.