Nas
próximas páginas, Cándido Pozo, ainda no grande tema da fé de Maria, relembra as
palavras de João Paulo II sobre a profecia de Simeão e o cântico de Maria,
importantes tópicos dentro da mariologia da Redemptoris
Mater.12
b)
O segundo anúncio a Maria
Uma
técnica, seguida pelo Papa na Encíclica Redemptoris
Mater, consiste em alcunhar novos termos para designar conhecidas passagens
evangélicas. As novas denominações permitem uma nova compreensão das cenas as
quais se aplicam.
Muitas vezes, falamos da profecia do velho Simeão (Lc 2, 34-35) e ponderamos
sua importância. Na Encíclica é original considerar-la “como um segundo anúncio
a Maria”. O primeiro anúncio, o do anjo, possui tons gloriosos e triunfais; do
Filho que é prometido à Virgem, diz-se que “será grande, chamar-se-á Filho do
Altíssimo, o Senhor lhe dará o trono do seu pai Davi, reinará sobre a casa de
Jacó eternamente, e seu reino não terá fim” (Lc 1,32-33). Agora Maria tem que
ouvir outras palavras, “sugeridas pelo Espírito santo (cf. Lc 2, 25-27)”, que
soam de maneira muito mais sombria.
O
“segundo anúncio” contém dois elementos: de Jesus diz-se que será “sinal de
contradição” (Lc 2,34), isto é, “bandeira discutida” segundo a tradução
litúrgica espanhola (o assunto impressiona fortemente João Paulo II, quem, como
é sabido, nos Exercícios Espirituais que, sendo cardeal, pregou a Paulo VI,
centrou ao redor dele e todas as suas considerações); como conseqüência deste
combate em torno a Cristo e da oposição que se faz a Jesus, Maria terá que
sofrer: “a tua própria alma será transpassada por uma espada” (Lc 2,35). Por um
lado, Simeão expressa “a concreta dimensão histórica na qual o Filho cumprirá
sua missão, isto é, em meio à incompreensão e a dor”; por outro lado, anuncia a
Maria “que deverá viver no sofrimento sua obediência de fé ao lado do Salvador
que sofre, e que sua maternidade será sombria e dolorosa”. Maria não retrocede
diante dos aspectos sombrios de sua missão; logo o mostrará assumindo as
dificuldades de sua fuga ao Egito para proteger a vida de seu Filho.
A
escuridão enquanto Maria “avançava na fé” é patente em Nazaré durante o seu
largo período de vida oculta. O Papa mostra que nesses anos, para usar
expressões de São João da Cruz, Maria vive a “noite da fé” enquanto um “véu”
cobre a realidade do mistério; o uso desta terminologia é normal no Papa: não
se esqueça de que a tese de doutorado em teologia de Karol Wojtyla foi sobre “A
fé em São João da Cruz”. Provavelmente não meditamos o bastante estes aspectos
quando nos referimos à vida oculta de Jesus de Nazaré. O anjo havia dito a
Maria, da parte de Deus, coisas gloriosas sobre seu Filho. Ela tem que crer
nelas “dias após dia”, ainda que vão passando os anos não somente da infância,
mas também da primeira juventude de Jesus até seus trinta anos, sem que
paradoxalmente faça nada do que pareceria dever se esperar do Messias. Maria
convive em Nazaré com um Jesus desconcertadamente consagrado a tarefas que nada
parecem ter a ver com sua missão, nem sequer parecer estar em consonância com a
descrição contida no anúncio do anjo. É por isso maravilhoso contemplar que “deste
modo Maria, durante muitos anos, permaneceu
em intimidade com o mistério de seu Filho e avançava em seu itinerário de fé”.
Realmente Maria “vivia em intimidade com este mistério somente por meio da fé”.
O
“véu” se faz especialmente denso no Calvário. Ali, junto à cruz, enquanto
mantinha seu “sim” da anunciação, tinha, sem dúvida, que recordar, uma vez
mais, as palavras grandiosas do anjo: “Será grande, chamar-se-á Filho do
Altíssimo, o Senhor lhe dará o trono de Davi seu pai, reinará sobre a casa de
Jacó eternamente, e seu reino não terá fim” (Lc 1, 32-33). Tendo presentes
estas palavras em sua memória, acreditava nelas também então, quando “estando
junto à cruz, Maria é testemunha, humanamente falando, de uma completa contradição àquelas palavras”. Em nenhum
momento de sua vida aparece como nesses momentos a heroicidade da “obediência
da fé” de Maria diante dos “insondáveis desígnios” de Deus, cujos “caminhos são
insondáveis” (cf. Rom 11,33).
c)
O
“Magnificat”: profissão de fé de Maria
Nossa fé tem necessidade de
fórmulas concisas nas quais se expresse. Na liturgia eucarística dos domingos e
das solenidades, proclamamos nossa fé com as fórmulas veneráveis de um Credo (o
Niceno-Constantinopolitano ou o Apostólico), isto é, de uma profissão de fé.
Também Maria, ao responder a Isabel com o Magnificat
(uma vez mais nesta Encíclica o Papa alcunha um termo novo muito sugestivo),
pronuncia “inspirada profissão de sua fé,
na qual a resposta à palavra da revelação é expressada com a elevação espiritual
e poética de todo seu ser até Deus”. O Magnificat
nos permite assim descobrir o conteúdo da fé de Maria.
Antes de tudo, confessa a “nova
‘auto-doação’ de Deus”, o mistério do “eterno amor que, como um dom irrevogável, entra na história do homem” de modo
absolutamente novo. Trata-se de uma “promessa feita aos pais” que teve seu
cumprimento em Cristo. Maria “se encontrou no próprio centro desta plenitude de Cristo”; “nela, como mãe de
Cristo, converge toda a economia
salvífica”. A alegria de Maria (“alegra-se meu espírito em Deus meu
salvador”) pelas coisas que o Poderoso, cujo nome é santo, fez por ela, tem
como fundamento esta realidade central de sua fé: o Deus da Aliança se lembrou
“da misericórdia”. “E não se detendo em sua vontade de encher-nos de dons, não
obstante o pecado do homem, Deus se dá no
Filho”.
Esta é a “verdade não ofuscada sobre Deus” que a “nova
Eva” proclama contra a “suspeita” que o “pai da mentira” fez surgir no coração
da primeira mulher: o Deus que “desde o começo é a fonte de todo dom”, fez agora grandes obras. “Porque Deus amou
tanto o mundo que deu seu Filho único” (Jo 3,16). “Maria é o primeiro
testemunho desta verdade”, que a Igreja não cessa de repetir.
Com a força desta verdade sobre
Deus, proclamada com tão extraordinária simplicidade por Maria, a Igreja “se vê
confortada” e “ao mesmo tempo, com esta
verdade sobre Deus deseja iluminar as difíceis e às vezes intricadas vias
da existência terrena dos homens”.
“Maria está profundamente
impregnada do espírito dos “pobres de Yahvé”. Isto significa que se sente pobre
e pequena diante de Deus. Esta consciência de pequenez dá um novo relevo a sua “experiência
pessoal” de que Deus fez “grandes obras” por ela. Sentindo-se, ao mesmo tempo,
insignificante e amada de Deus, descobre “que
não se pode separar a verdade sobre Deus que salva, sobre Deus que é fonte
de todo dom, da manifestação de seu amor
preferencial pelos pobres e humildes”. Cada um de nós renovará esta
convicção meditando as palavras de Maria no Magnificat.
À luz do Magnificat descobrimos que somente a atitude religiosa de Maria,
refletida nele, oferece um contexto que permite compreender o sentido do “amor
preferencial pelos pobres” e o verdadeiro “sentido cristão da liberdade e da
liberação”. Deus “derruba do trono os poderosos, exalta os humildes, enche de
bens os famintos e despede os ricos de mãos vazias... dispersa os soberbos... e
conserva sua misericórdia para com os que o temem” (cf. Lc 1, 50-53). A
disposição espiritual sobre a que Ele exercita sua misericórdia, nos tira de um
contexto meramente sociológico, a propósito do qual a opção deve qualificar-se
como preferencial. Talvez não seja inútil lembrar aqui que um teólogo da
libertação escreveu que basta o adjetivo “preferencial” aplicado à opção pelos
pobres para que uma teologia da libertação com cores marxistas resulte impossível.
De fato, a dialética da luta de classes exige optar por um frente a outros, e nela
se tornaria sem sentido a opção preferencial por uma das duas trincheiras que
se enfrentam em combate; ou se entra com todas as conseqüência em uma ou na
outra.
d)
Maternidade pela fé
Maria
foi Mãe de Cristo como conseqüência de sua resposta de fé ao anjo (Lc 1, 38). O
“fiat de Maria – faça-se em mim” – decidiu,
a partir do ponto de vista humano, a realização do mistério divino” da
Encarnação.
A
importância salvífica da fé de Maria, enfatizada nas palavras de Isabel em Lc
1,45 (“Feliz és tu que creste”), permite entender melhor certas passagens
evangélicas aparentemente difíceis. Uma delas é exclusiva de Lucas. Enquanto Jesus
falava, levada pelo entusiasmo que lhe ouvir produzia nela, “levantou a voz uma
melhor dentre a gente, e disse, dirigindo-se a Jesus: ‘Feliz o ventre que te levou, e os peitos que te criaram!’”
(Lc 11,27). À exclamação
simples e popular, Jesus responde levando o elogio a outro plano: “Mais felizes
os que escutam a Palavra de Deus e a guardam” (Lc 11,28).
A outra passagem citada na
Encíclica também é tirada de Lucas, mas é patrimônio comum de toda a tradição
sinóptica (cf. Mt 12,46-50; Mc 3,31-35).
“Ao ser anunciado a Jesus que sua ‘mãe e irmãos estão lá fora
e desejam ver-te’, Ele responde: ‘Minha mãe
e meus irmãos são aqueles que ouvem a palavra de Deus e a colocam em prática’
(cf. Lc 8,20-21). E disse isso ‘olhando ao seu redor para os que estavam
sentados em circulo’, como lemos em
Marcos (3,34), ou, segundo Mateus, ‘estendendo sua mão em direção a seus
discípulos’”.
Ambas
as cenas foram qualificadas, às vezes, como as “passagens antimariológicas” dos
Evangelhos. Em muitas ocasiões, quis-se ver nessas passagens como expressão de
uma vontade de Jesus de distanciar-se de sua Mãe, e até como uma advertência a
não supervalorizá-la. Nada mais longe da realidade.
É
notável que a Encíclica não somente cite Lc 11,27-28 (de todo, patrimônio
exclusivamente lucano), mas também, para a segunda cena, recorra à redação de
Lucas, ainda que se trate de uma passagem que é comum a Mateus e Marcos. Creio
que esta opção tenha sérios motivos. Lucas não pode ter se esquecido nos
capítulos 8 e 11 do que havia escrito no capítulo 1. Nele, ele havia
apresentado Maria com palavras de Isabel como “Feliz és tu que creste” (Lc
1,45). Sua resposta de fé não se limitou, segundo o testemunho de Lucas, a ser
uma afirmação intelectual frente à palavra ouvida a partir do anjo, mas foi uma
entrega total para o cumprimento: “Eis aqui a escrava do Senhor; faça-se em mim
segundo a tua palavra” (Lc 1,38). Lucas é, finalmente, o evangelista que nos
apresenta duas vezes, de modo explícito, Maria como a que “guardava” a palavra
e “a conservava cuidadosamente em seu coração” (cf. Lc 2,9.51). Por isso, Lucas
não pode ter se esquecido dessas afirmações presentes no seu próprio Evangelho,
tem que ter sido consciente de que em ambas as afirmações de Jesus (Lc 8,21;
11,28) Maria não somente não fica excluída, mas “que a maternidade nova e
distinta, da que Jesus fala a seus discípulos, concerne concretamente a Maria
de modo especialíssimo”. Maria é digna de louvor por ser biologicamente Mãe de
Jesus, como intuiu aquela simples mulher do povo; mas mais ainda pela reação de
fé viva que se entrelaça de modo íntimo com Ele desde o princípio dessa
maternidade, desde o “sim” ao anjo na anunciação.
Em
todo caso, as passagens citadas contêm uma doutrina de importância primordial
para cada um de nós. A imitação de Maria que nos precede em sua peregrinação da
fé, cada um de nós pode entrar na família de Jesus, em relação familiar com
Ele, por uma fé viva, por uma aceitação de sua mensagem que chegue ao fiel
comprimento, a colocá-la em prática com toda nossa vida.
Na Encíclica é enfatizado que a entrega plena de
Maria em sua resposta ao anjo está em “plena consonância com as palavras do
Filho que, segundo a Carta aos Hebreus,
ao vir ao mundo disse ao Pai: ‘Não quiseste sacrifício nem oblação, mas me formaste um corpo... Eis que
venho... ó Deus, para fazer a tua vontade’ (Heb 10,5-7)”. Deste modo, o ato
pelo qual Maria se dá e pelo qual coopera com obra salvadora de Cristo tem,
objetivamente considerado, o sentido de se unir à entrega de Jesus. Imitando
Maria, temos que realizar uma entrega da nossa própria vida com uma fé conseqüente
que nos una ao próprio oferecimento de Jesus ao Pai. Isso fará possível que
cada um de nós afirme: “Pela minha parte, completo na minha carne o que falta aos
sofrimentos de Cristo por seu corpo que é a Igreja” (Col 1,24).
[12] Cf.
POZO, C., “María, nueva Eva.”, BAC, Madrid 2005, p. 410-416.