sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

A Mariologia na Redemptoris Mater de João Paulo II - parte 3

Nas próximas páginas, Cándido Pozo, ainda no grande tema da fé de Maria, relembra as palavras de João Paulo II sobre a profecia de Simeão e o cântico de Maria, importantes tópicos dentro da mariologia da Redemptoris Mater.12

b) O segundo anúncio a Maria




Uma técnica, seguida pelo Papa na Encíclica Redemptoris Mater, consiste em alcunhar novos termos para designar conhecidas passagens evangélicas. As novas denominações permitem uma nova compreensão das cenas as quais se aplicam.
Muitas vezes, falamos da profecia do velho Simeão (Lc 2, 34-35) e ponderamos sua importância. Na Encíclica é original considerar-la “como um segundo anúncio a Maria”. O primeiro anúncio, o do anjo, possui tons gloriosos e triunfais; do Filho que é prometido à Virgem, diz-se que “será grande, chamar-se-á Filho do Altíssimo, o Senhor lhe dará o trono do seu pai Davi, reinará sobre a casa de Jacó eternamente, e seu reino não terá fim” (Lc 1,32-33). Agora Maria tem que ouvir outras palavras, “sugeridas pelo Espírito santo (cf. Lc 2, 25-27)”, que soam de maneira muito mais sombria.
O “segundo anúncio” contém dois elementos: de Jesus diz-se que será “sinal de contradição” (Lc 2,34), isto é, “bandeira discutida” segundo a tradução litúrgica espanhola (o assunto impressiona fortemente João Paulo II, quem, como é sabido, nos Exercícios Espirituais que, sendo cardeal, pregou a Paulo VI, centrou ao redor dele e todas as suas considerações); como conseqüência deste combate em torno a Cristo e da oposição que se faz a Jesus, Maria terá que sofrer: “a tua própria alma será transpassada por uma espada” (Lc 2,35). Por um lado, Simeão expressa “a concreta dimensão histórica na qual o Filho cumprirá sua missão, isto é, em meio à incompreensão e a dor”; por outro lado, anuncia a Maria “que deverá viver no sofrimento sua obediência de fé ao lado do Salvador que sofre, e que sua maternidade será sombria e dolorosa”. Maria não retrocede diante dos aspectos sombrios de sua missão; logo o mostrará assumindo as dificuldades de sua fuga ao Egito para proteger a vida de seu Filho.
A escuridão enquanto Maria “avançava na fé” é patente em Nazaré durante o seu largo período de vida oculta. O Papa mostra que nesses anos, para usar expressões de São João da Cruz, Maria vive a “noite da fé” enquanto um “véu” cobre a realidade do mistério; o uso desta terminologia é normal no Papa: não se esqueça de que a tese de doutorado em teologia de Karol Wojtyla foi sobre “A fé em São João da Cruz”. Provavelmente não meditamos o bastante estes aspectos quando nos referimos à vida oculta de Jesus de Nazaré. O anjo havia dito a Maria, da parte de Deus, coisas gloriosas sobre seu Filho. Ela tem que crer nelas “dias após dia”, ainda que vão passando os anos não somente da infância, mas também da primeira juventude de Jesus até seus trinta anos, sem que paradoxalmente faça nada do que pareceria dever se esperar do Messias. Maria convive em Nazaré com um Jesus desconcertadamente consagrado a tarefas que nada parecem ter a ver com sua missão, nem sequer parecer estar em consonância com a descrição contida no anúncio do anjo. É por isso maravilhoso contemplar que “deste modo Maria, durante muitos anos, permaneceu em intimidade com o mistério de seu Filho e avançava em seu itinerário de fé”. Realmente Maria “vivia em intimidade com este mistério somente por meio da fé”.
O “véu” se faz especialmente denso no Calvário. Ali, junto à cruz, enquanto mantinha seu “sim” da anunciação, tinha, sem dúvida, que recordar, uma vez mais, as palavras grandiosas do anjo: “Será grande, chamar-se-á Filho do Altíssimo, o Senhor lhe dará o trono de Davi seu pai, reinará sobre a casa de Jacó eternamente, e seu reino não terá fim” (Lc 1, 32-33). Tendo presentes estas palavras em sua memória, acreditava nelas também então, quando “estando junto à cruz, Maria é testemunha, humanamente falando, de uma completa contradição àquelas palavras”. Em nenhum momento de sua vida aparece como nesses momentos a heroicidade da “obediência da fé” de Maria diante dos “insondáveis desígnios” de Deus, cujos “caminhos são insondáveis” (cf. Rom 11,33).

c)         O “Magnificat”: profissão de fé de Maria



Nossa fé tem necessidade de fórmulas concisas nas quais se expresse. Na liturgia eucarística dos domingos e das solenidades, proclamamos nossa fé com as fórmulas veneráveis de um Credo (o Niceno-Constantinopolitano ou o Apostólico), isto é, de uma profissão de fé. Também Maria, ao responder a Isabel com o Magnificat (uma vez mais nesta Encíclica o Papa alcunha um termo novo muito sugestivo), pronuncia “inspirada profissão de sua fé, na qual a resposta à palavra da revelação é expressada com a elevação espiritual e poética de todo seu ser até Deus”. O Magnificat nos permite assim descobrir o conteúdo da fé de Maria.
Antes de tudo, confessa a “nova ‘auto-doação’ de Deus”, o mistério do “eterno amor que, como um dom irrevogável, entra na história do homem” de modo absolutamente novo. Trata-se de uma “promessa feita aos pais” que teve seu cumprimento em Cristo. Maria “se encontrou no próprio centro desta plenitude de Cristo”; “nela, como mãe de Cristo, converge toda a economia salvífica”. A alegria de Maria (“alegra-se meu espírito em Deus meu salvador”) pelas coisas que o Poderoso, cujo nome é santo, fez por ela, tem como fundamento esta realidade central de sua fé: o Deus da Aliança se lembrou “da misericórdia”. “E não se detendo em sua vontade de encher-nos de dons, não obstante o pecado do homem, Deus se dá no Filho”.
Esta é a “verdade não ofuscada sobre Deus” que a “nova Eva” proclama contra a “suspeita” que o “pai da mentira” fez surgir no coração da primeira mulher: o Deus que “desde o começo é a fonte de todo dom”, fez agora grandes obras. “Porque Deus amou tanto o mundo que deu seu Filho único” (Jo 3,16). “Maria é o primeiro testemunho desta verdade”, que a Igreja não cessa de repetir.
Com a força desta verdade sobre Deus, proclamada com tão extraordinária simplicidade por Maria, a Igreja “se vê confortada” e “ao mesmo tempo, com esta verdade sobre Deus deseja iluminar as difíceis e às vezes intricadas vias da existência terrena dos homens”.
“Maria está profundamente impregnada do espírito dos “pobres de Yahvé”. Isto significa que se sente pobre e pequena diante de Deus. Esta consciência de pequenez dá um novo relevo a sua “experiência pessoal” de que Deus fez “grandes obras” por ela. Sentindo-se, ao mesmo tempo, insignificante e amada de Deus, descobre “que não se pode separar a verdade sobre Deus que salva, sobre Deus que é fonte de todo dom, da manifestação de seu amor preferencial pelos pobres e humildes”. Cada um de nós renovará esta convicção meditando as palavras de Maria no Magnificat.
À luz do Magnificat descobrimos que somente a atitude religiosa de Maria, refletida nele, oferece um contexto que permite compreender o sentido do “amor preferencial pelos pobres” e o verdadeiro “sentido cristão da liberdade e da liberação”. Deus “derruba do trono os poderosos, exalta os humildes, enche de bens os famintos e despede os ricos de mãos vazias... dispersa os soberbos... e conserva sua misericórdia para com os que o temem” (cf. Lc 1, 50-53). A disposição espiritual sobre a que Ele exercita sua misericórdia, nos tira de um contexto meramente sociológico, a propósito do qual a opção deve qualificar-se como preferencial. Talvez não seja inútil lembrar aqui que um teólogo da libertação escreveu que basta o adjetivo “preferencial” aplicado à opção pelos pobres para que uma teologia da libertação com cores marxistas resulte impossível. De fato, a dialética da luta de classes exige optar por um frente a outros, e nela se tornaria sem sentido a opção preferencial por uma das duas trincheiras que se enfrentam em combate; ou se entra com todas as conseqüência em uma ou na outra.

d) Maternidade pela fé



Maria foi Mãe de Cristo como conseqüência de sua resposta de fé ao anjo (Lc 1, 38). O “fiat de Maria – faça-se em mim” – decidiu, a partir do ponto de vista humano, a realização do mistério divino” da Encarnação.
A importância salvífica da fé de Maria, enfatizada nas palavras de Isabel em Lc 1,45 (“Feliz és tu que creste”), permite entender melhor certas passagens evangélicas aparentemente difíceis. Uma delas é exclusiva de Lucas. Enquanto Jesus falava, levada pelo entusiasmo que lhe ouvir produzia nela, “levantou a voz uma melhor dentre a gente, e disse, dirigindo-se a Jesus: ‘Feliz o ventre que te levou, e os peitos que te criaram!’” (Lc 11,27). À exclamação simples e popular, Jesus responde levando o elogio a outro plano: “Mais felizes os que escutam a Palavra de Deus e a guardam” (Lc 11,28).
A outra passagem citada na Encíclica também é tirada de Lucas, mas é patrimônio comum de toda a tradição sinóptica (cf. Mt 12,46-50; Mc 3,31-35).

“Ao ser anunciado a Jesus que sua ‘mãe e irmãos estão lá fora e desejam ver-te’, Ele responde: ‘Minha mãe e meus irmãos são aqueles que ouvem a palavra de Deus e a colocam em prática’ (cf. Lc 8,20-21). E disse isso ‘olhando ao seu redor para os que estavam sentados em  circulo’, como lemos em Marcos (3,34), ou, segundo Mateus, ‘estendendo sua mão em direção a seus discípulos’”.

Ambas as cenas foram qualificadas, às vezes, como as “passagens antimariológicas” dos Evangelhos. Em muitas ocasiões, quis-se ver nessas passagens como expressão de uma vontade de Jesus de distanciar-se de sua Mãe, e até como uma advertência a não supervalorizá-la. Nada mais longe da realidade.
É notável que a Encíclica não somente cite Lc 11,27-28 (de todo, patrimônio exclusivamente lucano), mas também, para a segunda cena, recorra à redação de Lucas, ainda que se trate de uma passagem que é comum a Mateus e Marcos. Creio que esta opção tenha sérios motivos. Lucas não pode ter se esquecido nos capítulos 8 e 11 do que havia escrito no capítulo 1. Nele, ele havia apresentado Maria com palavras de Isabel como “Feliz és tu que creste” (Lc 1,45). Sua resposta de fé não se limitou, segundo o testemunho de Lucas, a ser uma afirmação intelectual frente à palavra ouvida a partir do anjo, mas foi uma entrega total para o cumprimento: “Eis aqui a escrava do Senhor; faça-se em mim segundo a tua palavra” (Lc 1,38). Lucas é, finalmente, o evangelista que nos apresenta duas vezes, de modo explícito, Maria como a que “guardava” a palavra e “a conservava cuidadosamente em seu coração” (cf. Lc 2,9.51). Por isso, Lucas não pode ter se esquecido dessas afirmações presentes no seu próprio Evangelho, tem que ter sido consciente de que em ambas as afirmações de Jesus (Lc 8,21; 11,28) Maria não somente não fica excluída, mas “que a maternidade nova e distinta, da que Jesus fala a seus discípulos, concerne concretamente a Maria de modo especialíssimo”. Maria é digna de louvor por ser biologicamente Mãe de Jesus, como intuiu aquela simples mulher do povo; mas mais ainda pela reação de fé viva que se entrelaça de modo íntimo com Ele desde o princípio dessa maternidade, desde o “sim” ao anjo na anunciação.
Em todo caso, as passagens citadas contêm uma doutrina de importância primordial para cada um de nós. A imitação de Maria que nos precede em sua peregrinação da fé, cada um de nós pode entrar na família de Jesus, em relação familiar com Ele, por uma fé viva, por uma aceitação de sua mensagem que chegue ao fiel comprimento, a colocá-la em prática com toda nossa vida.
Na Encíclica é enfatizado que a entrega plena de Maria em sua resposta ao anjo está em “plena consonância com as palavras do Filho que, segundo a Carta aos Hebreus, ao vir ao mundo disse ao Pai: ‘Não quiseste sacrifício nem oblação, mas me formaste um corpo... Eis que venho... ó Deus, para fazer a tua vontade’ (Heb 10,5-7)”. Deste modo, o ato pelo qual Maria se dá e pelo qual coopera com obra salvadora de Cristo tem, objetivamente considerado, o sentido de se unir à entrega de Jesus. Imitando Maria, temos que realizar uma entrega da nossa própria vida com uma fé conseqüente que nos una ao próprio oferecimento de Jesus ao Pai. Isso fará possível que cada um de nós afirme: “Pela minha parte, completo na minha carne o que falta aos sofrimentos de Cristo por seu corpo que é a Igreja” (Col 1,24).


[12] Cf. POZO, C., “María, nueva Eva.”, BAC, Madrid 2005, p. 410-416.

Nenhum comentário:

Postar um comentário