Continuando a
apresentação do último capítulo de “María, nueva Eva” de Cándido Pozo, traduzo
abaixo sua exposição sobre o tema da fé de Maria ao assentir ao plano de
salvação do Pai e como o Papa João Paulo II nos guia pelo tema em sua Encíclica
Redemptoris Mater.7
1.
A
fé de Maria
Dentro
dos testemunhos patrísticos mais antigos sobre a associação de Maria, como nova
Eva, à obra salvadora de Cristo é importante que Tertuliano acentue a
importância da fé de Maria nesta colaboração positiva: “Eva havia crido na
serpente; Maria creu em Gabriel. O que aquela pecou crendo, apagou esta
crendo”. Isto obriga a estudar um dos temas maiores presentes na Encíclica Redemptoris Mater, a importância da fé
de Maria de modo a realizar a missão que Deus a confiou. H. U. Von Balthasar
chegou a escrever: “O toque genial da Encíclica consiste, sobretudo, em ter
colocado no seu centro o tema da fé de Maria”8. Este é o primeiro
ponto que creio ser necessário estudar para dar uma visão de conjunto da
doutrina mariológica da Encíclica, sem deter-me, de modo reflexo, no que
pudessem ser seus aspectos ecumênicos, que o mesmo Von Balthasar expressava, em
seguida das suas palavras citadas, na forma de uma pergunta meramente retórica:
“a Encíclica por acaso não mantém um oculto e apaixonado diálogo com Lutero?”.
a)
A
Anunciação
Quando
os Padres do século II começam a expor a teologia de Maria como “nova Eva”,
fazem-no aludindo explicitamente à cena da anunciação. É nela onde Maria
dialoga com o anjo e obedece a Deus, em antítese à desobediência da primeira
Eva após o seu diálogo com o demônio. Por isso, era óbvio que o Papa começasse
sua Encíclica mariana com uma profunda reflexão sobre a Anunciação.
O
anjo saúda a Maria com as palavras “Alegra-te, cheia de graça, o Senhor está
contigo” (Lc 1, 28). É bem sabido que a expressão “cheia de graça” não é
estritamente uma tradução do particípio grego κεχαριτωμένη9, mas sim fruto
de uma reflexão de fé sobre ele.
Sem dúvida, o verbo χαριτóω, que contém como raiz a palavra χαρις (graça), tem, no Novo Testamento,
sentido teológico (“fazer objeto da graça”), como consta pela única outra
passagem em que aparece: Deus Pai “nos fez objeto da graça no Amado” (Ef, 1,6).
Com isso, é claro que toda tradução de κεχαριτωμένη na linha de um
sentido profano do verbo – linha iniciada no século XVI com as traduções de
Erasmo e Lutero - estaria fora de lugar.
É
normal explicar a mudança da mera tradução “feita objeto da graça” ao
desentranhar seu sentido, por uma reflexão de fé, como “cheia de graça”,
apelando ao fato de que o particípio faz em Lc 1,28 as vezes de nome próprio da
Virgem10. A utilização de uma denominação gramatical, através de um adjetivo ou verbo no particípio, como se fosse nome próprio de alguém só pode ser feita quando a qualidade
aludida se dá por antonomásia11 naquela pessoa. Este modo de argumentação se
dá na Encíclica como conhecido e é reconhecido o seu valor. O Papa, entretanto,
mostra predileção por um método que é característico na Redemptoris Mater e que consiste em iluminar o texto através de uma
outra passagem bíblica aparentemente sem relação, mas que, colocado em
paralelismo com ele, permite chegar ao fundo de seu significado.
Em efeito, Isabel proclama Maria “bendita
entre as mulheres” (Lc 1,42). A expressão a situa por cima de todas. Deste
modo, é significativo que a ação de graças “se refira a Maria de modo especial
e excepcional”.
As graças que nos são concedidas nos conduzem
a uma entrega a Deus. A plenitude de graça previamente concedida a Maria tende
a suscitar n’Ela uma plena resposta de fé às palavras que o anjo a transmite. Também
Isabel louvará a fé de Maria e a declarará feliz porque teve essa fé: “Feliz
aquela creu” (Lc 1, 45). “A plenitude de graça anunciada pelo anjo significa o
próprio dom de Deus; a fé de Maria, proclamada por Isabel na visitação, indica
como a Virgem de Nazaré respondeu a esse dom”.
Mas não podemos esquecer que a formulação
histórica da resposta de fé de Maria tem tons da mais total entrega: “Eis aqui
a escrava do Senhor, faça-se em mim segundo tua palavra” (Lc, 1,38). É
conhecido que a palavra “fé” tem no Novo Testamento diversos sentidos. Somente dois
nos interessam aqui. Às vezes, o termo se refere a uma “fé” meramente
intelectual. É o sentido que, para atender a uma problemática muito viva
naquele momento, privilegiou o Concílio Vaticano I. Não se pode sub-valorizar a
importância desta fé. Entretanto, é importante declarar sua insuficiência, se
não se desenvolve de modo que seja “a fé que atua pela caridade” (Gál 5,6). Quando
a fé não chega a um comportamento coerente, teremos que reconhecer com tristeza
que “como o corpo sem espírito está morto, também a fé sem obras está morta” (Tia
2,26). Em outras ocasiões, no Novo Testamento, a palavra “fé” tem o sentido totalizante
de plena resposta afirmativa a Cristo que começa pela adesão intelectual e se
prolonga no comportamento coerente. O Concílio Vaticano II utiliza este
conceito ao dizer que “pela fé o homem se entrega inteira e livremente a Deus”.
Uma explicação oficial dada no próprio Concílio faz alusão a que com a fórmula
citada se reproduz “a aceitação mais ampla da palavra que aparece nos escritos
de Paulo”. É o que teologicamente se chama “fé formada”, na qual, além da fé em
sentido estrito, “incluem-se a esperança e a caridade”. A resposta de fé de
Maria evidentemente não se circunscreve somente a aceitar como verdadeiro o anúncio
do anjo, mas passa a uma disponibilidade absoluta frente aos planos de Deus;
como escrava se submete a Sua vontade e se oferece para unir seu destino ao de
seu Filho: “Eis aqui a escrava do Senhor, faça-se em mim segundo tua palavra”
(Lc 1,38).
Compreende-se a insistência da Encíclica em
que imitemos a “obediência da fé” (Rom 16,26) de Maria, pela qual “se consagrou
totalmente a si mesma, qual escrava do Senhor, à pessoa e à obra de seu Filho”.
Maria na sua “excepcional peregrinação de fé representa um ponto de referência
constante para a Igreja, para os indivíduos e comunidades, para os povos e nações
e, em certo modo, para toda a humanidade”. Desde o momento da anunciação, Maria
empreende “todo seu ‘caminho até Deus’, todo seu caminho de fé. E sobre essa
via, de modo eminente e realmente heróico – mais que isso, como um heroísmo de
fé cada vez maior – se efetuará a ‘obediência’ professada por ela à palavra da
revelação divina. E essa ‘obediência da fé’ por parte de Maria ao largo de todo
seu caminho terá analogias surpreendentes como a fé de Abraão”. Nestes tempos
de fé fraca e, mais ainda, de fé pouco coerente, a figura de Maria adquire um
relevo de exemplaridade indiscutível. Faremos bem em olhar para Maria para
aprender com Ela como deve ser a nossa fé.
[7] Cf. POZO, C., “María, nueva Eva.”, BAC, Madrid 2005, p.
406-409.
[8] “Kommentar”, em J. RATZINGER – H. U. VON BALTHASAR, Maria – Gottes Ja zum Menschen. Enzyklika
“Mutter dês Erlösers”, o.c., 133.
[10] SAN
PEDRO CANISIO, De Maria Virgine
incomparabili et Dei Genitrice sacrosancta, 1.3, c.7, p.266 havia
demonstrado que o particípio sem artículo adquire sentido de algo que se é por excelência
sobre os demais. “O anjo substitui nome de Maria por κεχαριτωμένη: é o seu
"novo nome", o nome pelo qual é conhecida no plano de Deus, revelado
na mensagem.” (J. P. AUDET, “L’Annonce à Marie”, a.c., 359).
[11] Figura
de linguagem caracterizada pela substituição de um nome por outro nome ou
expressão que lembre uma qualidade, característica ou um fato que, de alguma
forma, identifique-o.
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