quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

A Mariologia na Redemptoris Mater de João Paulo II - parte 2


Continuando a apresentação do último capítulo de “María, nueva Eva” de Cándido Pozo, traduzo abaixo sua exposição sobre o tema da fé de Maria ao assentir ao plano de salvação do Pai e como o Papa João Paulo II nos guia pelo tema em sua Encíclica Redemptoris Mater.7




1.           A fé de Maria

Dentro dos testemunhos patrísticos mais antigos sobre a associação de Maria, como nova Eva, à obra salvadora de Cristo é importante que Tertuliano acentue a importância da fé de Maria nesta colaboração positiva: “Eva havia crido na serpente; Maria creu em Gabriel. O que aquela pecou crendo, apagou esta crendo”. Isto obriga a estudar um dos temas maiores presentes na Encíclica Redemptoris Mater, a importância da fé de Maria de modo a realizar a missão que Deus a confiou. H. U. Von Balthasar chegou a escrever: “O toque genial da Encíclica consiste, sobretudo, em ter colocado no seu centro o tema da fé de Maria”8. Este é o primeiro ponto que creio ser necessário estudar para dar uma visão de conjunto da doutrina mariológica da Encíclica, sem deter-me, de modo reflexo, no que pudessem ser seus aspectos ecumênicos, que o mesmo Von Balthasar expressava, em seguida das suas palavras citadas, na forma de uma pergunta meramente retórica: “a Encíclica por acaso não mantém um oculto e apaixonado diálogo com Lutero?”.

a)           A Anunciação

Quando os Padres do século II começam a expor a teologia de Maria como “nova Eva”, fazem-no aludindo explicitamente à cena da anunciação. É nela onde Maria dialoga com o anjo e obedece a Deus, em antítese à desobediência da primeira Eva após o seu diálogo com o demônio. Por isso, era óbvio que o Papa começasse sua Encíclica mariana com uma profunda reflexão sobre a Anunciação.
O anjo saúda a Maria com as palavras “Alegra-te, cheia de graça, o Senhor está contigo” (Lc 1, 28). É bem sabido que a expressão “cheia de graça” não é estritamente uma tradução do particípio grego κεχαριτωμένη9, mas sim fruto de uma reflexão de fé sobre ele. Sem dúvida, o verbo χαριτóω, que contém como raiz a palavra χαρις (graça), tem, no Novo Testamento, sentido teológico (“fazer objeto da graça”), como consta pela única outra passagem em que aparece: Deus Pai “nos fez objeto da graça no Amado” (Ef, 1,6). Com isso, é claro que toda tradução de κεχαριτωμένη na linha de um sentido profano do verbo – linha iniciada no século XVI com as traduções de Erasmo e Lutero - estaria fora de lugar.
É normal explicar a mudança da mera tradução “feita objeto da graça” ao desentranhar seu sentido, por uma reflexão de fé, como “cheia de graça”, apelando ao fato de que o particípio faz em Lc 1,28 as vezes de nome próprio da Virgem10. A utilização de uma denominação gramatical, através de um adjetivo ou verbo no particípio, como se fosse nome próprio de alguém só pode ser feita quando a qualidade aludida se dá por antonomásia11 naquela pessoa. Este modo de argumentação se dá na Encíclica como conhecido e é reconhecido o seu valor. O Papa, entretanto, mostra predileção por um método que é característico na Redemptoris Mater e que consiste em iluminar o texto através de uma outra passagem bíblica aparentemente sem relação, mas que, colocado em paralelismo com ele, permite chegar ao fundo de seu significado.
Em efeito, Isabel proclama Maria “bendita entre as mulheres” (Lc 1,42). A expressão a situa por cima de todas. Deste modo, é significativo que a ação de graças “se refira a Maria de modo especial e excepcional”.
As graças que nos são concedidas nos conduzem a uma entrega a Deus. A plenitude de graça previamente concedida a Maria tende a suscitar n’Ela uma plena resposta de fé às palavras que o anjo a transmite. Também Isabel louvará a fé de Maria e a declarará feliz porque teve essa fé: “Feliz aquela creu” (Lc 1, 45). “A plenitude de graça anunciada pelo anjo significa o próprio dom de Deus; a fé de Maria, proclamada por Isabel na visitação, indica como a Virgem de Nazaré respondeu a esse dom”.
Mas não podemos esquecer que a formulação histórica da resposta de fé de Maria tem tons da mais total entrega: “Eis aqui a escrava do Senhor, faça-se em mim segundo tua palavra” (Lc, 1,38). É conhecido que a palavra “fé” tem no Novo Testamento diversos sentidos. Somente dois nos interessam aqui. Às vezes, o termo se refere a uma “fé” meramente intelectual. É o sentido que, para atender a uma problemática muito viva naquele momento, privilegiou o Concílio Vaticano I. Não se pode sub-valorizar a importância desta fé. Entretanto, é importante declarar sua insuficiência, se não se desenvolve de modo que seja “a fé que atua pela caridade” (Gál 5,6). Quando a fé não chega a um comportamento coerente, teremos que reconhecer com tristeza que “como o corpo sem espírito está morto, também a fé sem obras está morta” (Tia 2,26). Em outras ocasiões, no Novo Testamento, a palavra “fé” tem o sentido totalizante de plena resposta afirmativa a Cristo que começa pela adesão intelectual e se prolonga no comportamento coerente. O Concílio Vaticano II utiliza este conceito ao dizer que “pela fé o homem se entrega inteira e livremente a Deus”. Uma explicação oficial dada no próprio Concílio faz alusão a que com a fórmula citada se reproduz “a aceitação mais ampla da palavra que aparece nos escritos de Paulo”. É o que teologicamente se chama “fé formada”, na qual, além da fé em sentido estrito, “incluem-se a esperança e a caridade”. A resposta de fé de Maria evidentemente não se circunscreve somente a aceitar como verdadeiro o anúncio do anjo, mas passa a uma disponibilidade absoluta frente aos planos de Deus; como escrava se submete a Sua vontade e se oferece para unir seu destino ao de seu Filho: “Eis aqui a escrava do Senhor, faça-se em mim segundo tua palavra” (Lc 1,38).
Compreende-se a insistência da Encíclica em que imitemos a “obediência da fé” (Rom 16,26) de Maria, pela qual “se consagrou totalmente a si mesma, qual escrava do Senhor, à pessoa e à obra de seu Filho”. Maria na sua “excepcional peregrinação de fé representa um ponto de referência constante para a Igreja, para os indivíduos e comunidades, para os povos e nações e, em certo modo, para toda a humanidade”. Desde o momento da anunciação, Maria empreende “todo seu ‘caminho até Deus’, todo seu caminho de fé. E sobre essa via, de modo eminente e realmente heróico – mais que isso, como um heroísmo de fé cada vez maior – se efetuará a ‘obediência’ professada por ela à palavra da revelação divina. E essa ‘obediência da fé’ por parte de Maria ao largo de todo seu caminho terá analogias surpreendentes como a fé de Abraão”. Nestes tempos de fé fraca e, mais ainda, de fé pouco coerente, a figura de Maria adquire um relevo de exemplaridade indiscutível. Faremos bem em olhar para Maria para aprender com Ela como deve ser a nossa fé.



[7] Cf. POZO, C., “María, nueva Eva.”, BAC, Madrid 2005, p. 406-409.
[8] “Kommentar”, em J. RATZINGER – H. U. VON BALTHASAR, Maria – Gottes Ja zum Menschen. Enzyklika “Mutter dês Erlösers”, o.c., 133.
[10] SAN PEDRO CANISIO, De Maria Virgine incomparabili et Dei Genitrice sacrosancta, 1.3, c.7, p.266 havia demonstrado que o particípio sem artículo adquire sentido de algo que se é por excelência sobre os demais. “O anjo substitui nome de Maria por κεχαριτωμένη: é o seu "novo nome", o nome pelo qual é conhecida no plano de Deus, revelado na mensagem.” (J. P. AUDET, “L’Annonce à Marie”, a.c., 359).
[11]  Figura de linguagem caracterizada pela substituição de um nome por outro nome ou expressão que lembre uma qualidade, característica ou um fato que, de alguma forma, identifique-o.

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