quarta-feira, 14 de agosto de 2013

O "lado bom" da escravidão

"Querido Vermebile, 
É com pesar que recebo a notícia de que seu paciente converteu-se ao Cristianismo. (...) Enquanto isso, temos de tentar aproveitar a situação ao máximo. Não há motivo para desespero; centenas de adultos convertidos foram recuperados depois de uma breve temporada ao lado do Inimigo e agora estão conosco. Todos os hábitos do paciente, tanto mentais quanto corporais, ainda estão a nosso favor."
(Cartas de um diabo a seu aprendiz, 
C.S. Lewis)

No trecho acima, retirado do famoso livro Cartas de um diabo a seu aprendiz de C.S. Lewis, o diabo-mestre consola seu aprendiz após a conversão  ao Cristianismo do seu paciente, pessoa pela qual o diabinho é encarregado de desencaminhar e levar para o mal.
Segundo ele, a Conversão não é motivo de desespero e vergonha por parte do diabo-iniciante, já que muitas almas convertidas, após de um curto período na caminho de Deus acabam voltando para o mal. Mas porque? Por insegurança na sua decisão? Por falta de fé?
Não. Ali, o diabo mais experiente lembra de um dos maiores trunfos que eles possuem para levar de volta as pessoas para o pecado: os seus hábitos.

O Pe. Antônio Fortea, no seu livro também muito famoso Summa Daemoniaca, responde na Questão 17 à pergunta: Porque pecamos?
No Summa Daemoniaca, o Pe. Fortea, num esforço teológico, responde a muitas questões acerca da realidade angélica e demoníaca. É importante sabermos que se trata de um esforço teológico porque a esmagadora parte do conhecimento encontrado ali não constitui verdade de fé, mas tentativas humanas, esforços racionais, de se explicar a existência e atuação de anjos e demônios.
Na Questão 17, no entanto, o padre teólogo encontra certa dificuldade em explicar o motivo do nosso pecado. Segundo ele, o pecado é um enigma. Ocorre quando, diante de duas opções, em que sabemos que uma é boa e outra é má, nos sentimos atraídos a escolher a má. E é exatamente isso que torna o pecado interessante do ponto de vista intelectual: "Porque escolhemos o mal sabendo que ele é o mal? Isso é um verdadeiro mistério". (Summa Daemoniaca, J.A. Fortea)

A pesar de não conseguir chegar a uma resposta final, ele nos oferece duas respostas razoáveis para esse questionamento. Em primeiro lugar, ele argumenta que pecamos por fraqueza, o que é verdade, mas não justifica o pecado: "Então, por mais fracos que sejamos sempre podemos resistir". Em seguida, ele nos apresenta uma segunda possibilidade (e é nessa que eu me concentro aqui): "Poderíamos dizer que cometemos o mal pelo bem que conseguimos com ele". Essa explicação, no entanto, a pesar de ser adequada, apenas nos ajuda a entender e não explica cabalmente a razão porque pecamos. Através da nossa inteligência, poderíamos reconhecer que o bem que conseguimos praticando o mal é, na verdade, uma "maçã envenenada" pelo pecado e, por isso, por mais desejável que esse bem nos pareça, a nossa consciência nos diz que não deveríamos escolher essa opção. 

Aqui, entretanto, explicar o motivo pelo o qual pecamos não é o que nos interessa. O fato é que, mais vezes do que gostaríamos, fazemos coisas que nos afastam de Deus e a "maçã envenenada", o bem que obtemos com o pecado, exerce papel central nisso. Como?

Para entendermos os perigos dos benefícios do pecado, do "lado bom" da escravidão, podemos olhar o texto do livro de Números que descreve a ocasião em que os Hebreus, durante sua peregrinação em direção à terra prometida, reclamavam a Moisés pela escassez de alimentos:

"A população que estava no meio de Israel foi atacada por um desejo desordenado; e mesmo os israelitas recomeçaram a gemer: “Quem nos dará carne para comer?, diziam eles. Lembramo-nos dos peixes que comíamos de graça no Egito, os pepinos, os melões, os alhos bravos, as cebolas e os alhos. Agora nossa alma está seca. Não há mais nada, e só vemos maná diante de nossos olhos.” O maná assemelhava-se ao grão de coentro e parecia-se com o bdélio." (Números 11, 4-7)


Os Israelitas, olha só!, diante das dificuldades e sacrifícios físicos exigidos no seu caminho rumo à vida de liberdade e abundância prometida por Deus, se tornam seus piores inimigos ao serem tomados "por um desejo desordenado". Chegam ao absurdo de sentir saudade da escravidão no Egito, por causa dos benefícios que eles tinham sob o julgo do Faraó.

Ainda que a posição do povo hebreu naquele momento nos pareça sim absurda, é importante notarmos que essa é a nossa posição com mais frequência do que percebemos. 
A vida de pecado é uma realidade que nos escraviza. Quantas vezes já nos passou pela cabeça: "Eu vivo no erro a tanto tempo, não há mais saída para mim" ou "Faz tempo demais que peco para pensar em sair do pecado"?
Algumas vezes, no entanto, não é o pecado original nem a vida de pecado que nos prende. Pelo contrário, assim como o "desejo desordenado" que tomou os israelitas os impedia de caminhar livres rumo à vida que Deus preparara para eles, é o nosso próprio medo de caminhar em liberdade que nos debilita e, assim, nós nos tornamos nossos próprios inimigos. "Em certo sentido, começamos a parceria com nosso captor em sua tentativa de nos manter escravizados e longe de abundância e plenitude em Deus." (One in a million, Priscilla Shirer)

Aqui, identificamos, por fim, a força dos hábitos que nos mantém algemados ao pecado, e que o diabo ensina ao seu aprendiz a aproveitar, na narrativa de C.S. Lewis.
Sabores fortes e cheiros foram impressos nas memórias dos hebreus, fazendo com que eles ansiassem por aqueles prazeres novamente, e contribuíram para a sujeição de Israel ao Egito.
Em muitas circunstâncias, ao percorrermos o caminho de Deus, na nossa peregrinação pelos nossos desertos, a nossa dependência a certos sentimentos e sentidos que nos faz cair de volta nos erros nos quais nos encontrávamos antes. A todo momento, mesmo depois de abdicarmos do pecado, o Inimigo nos lembra do sabor, da cor e da deliciosa consistência daquela "maçã envenenada". 
A vida longe de Deus tem sempre benefícios e o Inimigo faz questão de garantir que eles sejam viciantes. Assim, somos sempre capazes de nos lembrar dos sabores e temperos que obtemos com o pecado, a pesar de nunca nos lembrarmos de todo sofrimento que passávamos ou fazíamos outros passarem. Os Israelitas, chorando pelos peixes, pepinos, melões, alhos e cebolas, estranhamente não se lembravam de todo sofrimento e trabalho pesado que os capatazes egípcios os faziam passar. 

Mas por que será que nos apegamos tanto ao "lado bom" da escravidão e não nos lembramos das dificuldades da escravidão? Por que somos tomados por "desejos desordenados" e desenvolvemos amnésia espiritual acerca do julgo sofrido?
A verdade é que nós somos como crianças que, vivendo em um mundo de fantasia criado por nós mesmos, nos negamos a ver o lado ruim das coisas. É muito difícil realmente olhar e ver nossa miséria. Junto com os "benefícios", o Inimigo nos faz ter vergonha das coisas que fizemos, para que não queiramos olhar para trás e vê-las de verdade. Apenas nos lembramos das coisas boas. 

Os "benefícios" não são necessariamente coisas ruins e é necessário atenção neste ponto: Não há nada necessariamente errado com o prazer, com os sentidos e sentimentos. O que é errado é sentir saudade do pecado que nos conferia tais benefícios, de forma que, presos ao "lado bom" do pecado, nos tornamos presos novamente ao velho estilo de vida.

Para os Israelitas, era necessário que eles abdicassem da "segurança" e "conforto" de ter seu alimento garantido todos os dias pelos egípcios e confiar na Providência Divina para que eles pudessem continuar no seu caminho rumo à terra onde jorra leite e mel.
Para nós, o que é necessário?
Isso cada um pode responder por si. Mas é um fato que, para experimentar uma vida de plenitude em Deus, precisamos abdicar do "lado bom" dos nossos pecados e, com certeza, isso requer uma decisão difícil de ser tomada e mais ainda de ser vivida.

O que Deus quer que eu deixe para trás hoje? Quais os benefícios que eu tenho que abdicar para viver mais perto d'Ele?

Se nos fizermos essa pergunta a cada novo dia, temos uma chance maior de não desistirmos no meio do caminho, com saudades do nosso Egito.

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